Juros trabalhistas à Fazenda Pública

Introdução

Durante algum tempo pacificou-se o entendimento pela aplicação dos juros simples de 1% ao mês, na Justiça do Trabalho, de acordo com a Lei n.º 8.177/91.

De acordo com as informações do site do Tribunal Superior do Trabalho, estaria sendo objeto de elaboração/encaminhamento um anteprojeto de Lei propondo a elevação dos juros incidentes sobre os débitos trabalhistas em execução. O fundamento seria o artigo 406 do novo Código Civil (Lei n.º 10.406/02), prevendo que os débitos resultantes das ações civis devem acompanhar a taxa fixada para pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Essa taxa, atualmente, é a Selic, fixada em 24% ao ano, ou 2% ao mês.

2. A regra beneficiadora da Fazenda Pública

A Medida Provisória n.º 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, deu a seguinte redação ao artigo 1.º-F da Lei n.º 9.494/97: “Os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda Pública para o pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, não poderão ultrapassar o percentual de seis por cento ao ano”.

A indagação a ser feita é se dita norma se aplica à Justiça do Trabalho. Necessário se verificar, ainda, a possibilidade de aplicação com efeito retroativo do dispositivo. E, por fim, se há inconstitucionalidade presente.

3. Argumentação favorável. Precedente do C. TST

Há um julgado da mais alta Corte Trabalhista, em sua composição plenária, determinando essa aplicação integralmente: TST-TP-RXOFROAG 4573/2002-921-21-40. Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho. DJ 20.06.03.

4. A argumentação contrária

4.1. – A não aplicabilidade do art. 1.º-F da Lei n.º 9.494/97 à Justiça do Trabalho

Não há dúvida de que a regra, decorrente da redação dada pela Medida Provisória n.º 2.180-35, de 24.08.01, é absolutamente genérica.

Como existe regra atinente aos juros aplicável especificamente aos débitos trabalhistas (Lei n.º 8.177, art. 39, § 1.º), não se pode considerar aplicável regra geral que visou atender à generalidade das situações (MP n.º 2.180-35/01).

Não se pode falar em revogação tácita ou implícita ante a largueza do novo texto, em analogia com a delimitação específica da antiga regra especial. Por outro lado, não há revogação expressa da Lei n.º 8.177 pela MP n.º 2.180.

Conclui-se, pois, quanto a esse item, não ser aplicável o art. 1.º-F da Lei n.º 9.494/97, acrescentado pela MP n.º 2.180-35, à Justiça do Trabalho, em face da existência de regra própria especial, que disciplina os juros moratórios (Lei n.º 8.177/91, art. 39).

4.2. A aplicação do princípio da irretroatividade

De qualquer modo, deve ser examinado o argumento da irretroatividade das leis.

Como se sabe, a irretroatividade das leis é um princípio constitucional (art. 5.º, XXXVI, CF/88). Assim, não pode a lei posterior à ocorrência do fato, sob pena de inconstitucionalidade, retroagir, atingindo o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada(1).

Na data da condenação determinam-se os juros. E os juros na Justiça do Trabalho aplicam-se desde o ajuizamento da ação (art. 883, parte final, da CLT e art. 39, § 1.º, da Lei n.º 8.177/91). Ainda que o título judicial não o tenha definido expressamente, é possível falar na aplicação tácita da lei especial (Súmula n.º 211 do C. TST.

Nesse sentido interpretou o C. STJ, por suas 5.ª e 6.ª turmas, das quais se citam os seguintes precedentes: a) 6.ª turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, no RESP 554412/RS, DJ 15.02.03; b) 5.ª turma, Rel. Min. Felix Fischer, no RESP 587343/RS, DJ 19.12.03.

Embora um julgado tome como marco a data da condenação, e o outro a data do ajuizamento da ação, o fato é que nenhum deles aplica retroativamente a nova regra.

O Órgão Especial do E. TRT da 9.ª Região, em face desta corrente, em sua maioria, ao julgar o ARL 00898-1991-006-09-41-9, em 22.03.04, remeteu-se a debater a conveniência da argüição de inconstitucionalidade do dispositivo da Medida Provisória. Incidentalmente, levantou-se a tese da inaplicabilidade da regra aos processos iniciados antes de sua edição.

Essa última corrente ganhou corpo, porque o caso concreto tinha se iniciado muito antes da norma que previu a redução dos juros.

Fundamentaram os defensores dessa corrente com o segundo julgado do C. STJ, antes mencionado, que assim se orientou: “A Medida Provisória n.º 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, que acrescentou o art. 1.º-F ao texto da Lei n.º 9.494/97, por ser norma instrumental-material, com reflexos na esfera jurídico-material das partes, não é aplicada aos processos iniciados antes da sua edição”(2).

Entendeu, desse modo, a douta maioria, que os juros moratórios estabelecidos na Medida Provisória não poderiam ser aplicados aos processos iniciados em face da Fazenda Pública antes de sua edição, vale dizer, em 24.08.01.

O argumento da inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da isonomia, insculpido no caput do art. 5.º da Constituição Federal, restou, assim, prejudicado, em face do que consta do caput do art. 120 do Regimento Interno, isto é, por não ser considerado imprescindível para o julgamento. Assim, a argüição de inconstitucionalidade da MP n.º 2.180-35, no que toca aos juros de mora da Fazenda Pública, ainda poderá vir a ser debatida, novamente, quando, no caso concreto, for considerada aplicável a MP n.º 2.180-35.

4.3. A inconstitucionalidade da MP n.º 2.180-35/01 (art. 4.º, no que tange à introdução do art. 1.º-F, introduzido na Lei n.º 9.494/97)

Se for possível ultrapassar todos os argumentos anteriores, ou se se deparar com ação ajuizada após 24.08.01, pode-se dizer, ainda, inconstitucional a nova disciplina legal dos juros.

O fundamento para isso é que a mudança da taxa de juros estabelecida pela MP n.º 2.180-35 configura-se em verdadeiro privilégio à Fazenda Pública, e não prerrogativa, uma vez que “a desigualdade imposta não encontraria correlação lógica com a real condição dos beneficiados e não estaria justificada pelo legítimo interesse público”(3).

Ao examinar a Medida Provisória que ampliava o prazo de decadência de dois para cinco anos quando proposta a ação rescisória pela Fazenda Pública, em voto do Min. Sepúlveda Pertence, asseverou: “A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar seus limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo”(4).

Mutatis mutandis, aplicam-se os argumentos da Excelsa Corte ao caso aqui discutido.

5. Conclusões

5.1. A Medida Provisória n.º 2.180-35, de 24.08.01, estatuiu a regra de que os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda Pública, para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, não poderão ultrapassar o percentual de 6 (seis) por cento ao ano. Essa norma foi incorporada como o art. 1.º-F da Lei n.º 9.494/97;

5.2. O C. TST, analisando um caso concreto, em decisão do Pleno, entendeu que a fixação do percentual de juros é questão de direito material, e não de direito processual, e determinou fossem considerados os juros aplicáveis nas condenações da Fazenda Pública à base de 0,5% ao mês, a partir de setembro/2001 (Proc. RXOFROAG 4.753/2002-921-21-40-7. DJ 20.06.03).

5.3. Apesar dessa decisão, tomada por unanimidade, é possível argumentar não ser aplicável o art. 1.º-F da Lei n.º 9.494/97, acrescentado pela MP n.º 2.180-35/01, à Justiça do Trabalho, em face da existência de regra própria especial, que disciplina os juros moratórios (Lei n.º 8.177/91, art. 39, I 1.º e 2.º);

5.4. Ainda que se possa aplicar nova regra dos juros à Justiça do Trabalho, não incidiria retroativamente sobre as ações em que já houvesse condenação, ou mesmo apenas o ajuizamento anterior, vale dizer, antes de 24.08.01. Assim decidiu o Órgão Especial do E. TRT da 9.ª Região;

5.5. Por fim, e de qualquer modo, considera-se inconstitucional o art. 4.º da MP n.º 2.180-35/01, quanto ao art. 1.º -F acrescentado à Lei n.º 9.494/97, no que diz respeito ao estabelecimento dos juros devidos nas condenações impostas à Fazenda Pública, por ofensa ao princípio da isonomia insculpido no caput do art. 5.º da Constituição Federal, permanecendo em vigor a taxa de juros de 1% ao mês fixada pela Lei n.º 8.177/91 para a atualização dos débitos trabalhistas, ainda que a Fazenda Pública esteja no pólo passivo, uma vez que a inovação discutida, “de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar seus limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo”(5).

Notas

(1) DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 196-197.

(2) RESP 587343/RS; Recurso Especial 2003/0169418-0, Fonte DJ de 19.12.03, p. 622. Rel. Min. Felix Ficher.

(3) ROLLIN, Cristiane Flores Soares. As garantias do cidadão no processo civil. Org. PORTO, Sérgio Gilberto. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 63.

(4) ADIN n.º 1.753-2, Tribunal Pleno, em 16.04.98, unânime.

(5) DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 8.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 74.

Luiz Eduardo Gunther e Cristina Maria Navarro Zornig,

juiz do Trabalho e assessora no TRT da 9.ª Região.

Nota do Editor: O artigo “O Direito do trabalho no STF”, publicado na edição de 11/4/2004, página 12, é de co-autoria de Cristina Maria Navarro Zornig.

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