Juízo de desaprovação da conduta (I)

O tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da tipicidade material fazem parte três juízos valorativos distintos: juízo de desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado jurídico e juízo de imputação objetiva do resultado.

Regras básicas do juízo de desaprovação ou desvaloração da conduta: o juízo de desvaloração (ou desaprovação) da conduta, como se vê, é a primeira exigência emanada da tipicidade material (ou normativa).

As principais regras relacionadas com a desaprovação (ou desvaloração) da conduta são as seguintes:

1.ª) o sujeito só responde penalmente se ele criou ou incrementou com sua conduta um risco proibido relevante: criação ou incremento de um risco proibido relevante: nisso é que reside a essência do juízo de desaprovação da conduta. Quem cria um risco proibido (acidente de trânsito em razão de alta velocidade, v.g.; quem dispara contra outra pessoa sabendo do risco da conduta etc.) responde por ele; quem incrementa um risco anteriormente criado (como na omissão de socorro ou na hipótese de quem causa novo ferimento em quem já estava com hemorragia em razão de lesões anteriores), do mesmo modo, responde por ele. A teoria da criação ou incremento de riscos proibidos nasceu originariamente para explicar os delitos culposos. Hoje é válida para todos os delitos.

Criação de risco em razão da combinação de fatores (culpas concorrentes): no caso de culpas concorrentes ambos os sujeitos devem responder pelo resultado (que lhes é imputável normalmente). ?A? viola o sinal vermelho; ?B?, que estava em alta velocidade, desvia-se do primeiro veículo e mata uma terceira pessoa. O risco proibido, nesse caso, resulta de uma combinação de fatores. Ambos os condutores criaram o risco proibido.

Logo, ambos respondem penalmente (leia-se: a ambos é objetivamente imputável o resultado).

2.ª) não há desaprovação da conduta (desvalor da conduta ou risco proibido) quando o risco criado é permitido ou tolerado ou aceito ou juridicamente não desvalorado: há muitas situações de risco permitido ou tolerado ou aceito ou juridicamente não desvalorado. Exemplos:

1) situações de risco normal: é o caso de Henry George, instrutor americano, que deu aulas de pilotagem para o terrorista suicida Mohammed Atta, que jogou o avião da American Airlines contra a Torre Norte do WTC, tombada em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Quem atua em situações de risco normal não tem responsabilidade penal. No atentado de 11 de março de 2004 em Madri não responde pelo delito quem regularmente vendeu a pólvora que foi utilizada para as explosões. Quem vende veículo regularmente não responde pelo acidente causado com ele em razão de imprudência do motorista. Quem vende arma de fogo licitamente não responde pelas mortes causadas pelo seu proprietário ou possuidor. Quem vende um pão não pode ser responsabilizado pelo delito de envenenamento praticado com a sua utilização etc.

Regressus ad infinitum: como se vê, o juízo de desaprovação da conduta impede o chamado regressus ad infinitum, que consistiria em responsabilizar penalmente todos os que concorrem para o resultado. Já afirmamos linhas atrás o seguinte: se a teoria da equivalência dos antecedentes causais (teoria da conditio sine qua non) fosse aplicada em sua literalidade haveria o regressus ad infinitum (pela morte de uma pessoa responderia quem efetuou o disparo, o vendedor da arma, o fabricante da arma etc.). Ocorre que o vendedor da arma, o fabricante da arma etc. realizam atividades de risco normal. E quem cria risco normal não pode ser penalmente responsabilizado.

2) intervenções médicas terapêuticas ou curativas: o médico quando realiza uma intervenção médica curativa seguindo rigorosamente a lei da medicina cria riscos para o paciente (e danos físicos também), porém, são riscos permitidos. São danos produzidos no contexto de risco permitido.

Por isso é que tais danos não se convertem em lesão (jurídica) punível. Quem cria risco permitido não pratica nenhum fato típico.

3) lesões esportivas: todas as lesões ocorridas dentro do esporte e de acordo com as regras desse esporte derivam de riscos permitidos (mesmo no boxe, morrendo um dos boxeadores, não há que se falar em delito). O boxeador que mata o adversário com um golpe mortal, produz danos (danifica a vida alheia). Mas esses danos não se transformam em lesão jurídica, justamente porque foram produzidos num contexto de risco permitido.

Seja na intervenção médica com sucesso, seja na lesão esportiva regulamentar, não se pode falar em desaprovação da conduta. Danos não se confundem com lesão. Uma vez constatados os danos, impõe-se a sua análise jurídica. Em regra os danos físicos se convertem em lesão jurídica, mas há exceções. Quando os danos são produzidos em um contexto de risco permitido, não há que se falar em lesão jurídica. Aliás, antes, não há que se falar sequer em conduta típica (ou desaprovada).

O que fica excluída, nas duas últimas situações, portanto, não é a antijuridicidade (como afirmava a doutrina clássica), sim, a tipicidade penal (mais precisamente, a tipicidade material). Quem atua sob risco permitido, ainda que naturalísticamente cause danos para a vítima, não pratica fato típico. Não há que se falar em tipicidade nesse caso. Aliás, é a tipicidade material que se afasta. Mais uma vez cabe sublinhar: causar um resultado não é a mesma coisa que gerar desvaliosamente o resultado. O plano da causação é um, o da desvaloração da conduta é outro. A tipicidade formal, por si só, já não explica a teoria da tipicidade penal.

Tipicidade penal significa tipicidade formal ou objetiva + tipicidade material ou normativa + tipicidade subjetiva. Causar, desvalorar e imputar são três categorias distintas em Direito penal (porém necessárias para a tipicidade).

4) colocação de ofendículos: ofendículos são os meios utilizados para a proteção de bens jurídicos. Exemplos: cacos de vidro sobre muros, posse de cachorro, cerca elétrica etc. Desde que não haja abuso, a colocação de ofendículos constitui mais um exemplo de criação de risco permitido (é exercício de um direito).

Não há dúvida que cacos de vidro sobre muros criam riscos para bens jurídicos, porém, esses riscos são permitidos. Diga-se a mesma coisa em relação à eletrificação de cercas. Esse ato, desde que praticado dentro das normas regulamentares (respeitando determinada altura, não ultrapassando certa potência elétrica etc.), é expressão de um risco permitido. Quando os ofendículos funcionam concretamente contra algum ataque não há que se falar em delito, em princípio, se eles foram colocados dentro do que é permitido. O tema é complicado (e será visto no âmbito das causas justificantes) quando um ofendículo funciona e causa grave resultado jurídico (morte de uma pessoa, por exemplo), porém, de modo desproporcional. Entra em jogo, nesse caso, a necessidade de ponderação dos bens em conflito. Mais adiante cuidaremos desse tema (na seção atinente à antijuridicidade).

5) teoria da confiança ou princípio da confiança: quem atua seguindo as regras de uma atividade pode confiar que outras pessoas, salvo se condições e situações especiais indicarem o contrário, irão também cumprir as mesmas regras. No trânsito, v.g., quem cumpre todas as regras do código respectivo pode confiar que outros condutores e pedestres vão também cumpri-las normalmente. Quem dirige seu veículo em velocidade normal, mão correta etc., cria risco permitido. Vendo uma pessoa na esquina, parada, lógico que não precisa reduzir velocidade, parar o veículo etc. O motorista segue seu trajeto normalmente e confia que a vítima vai aguardar o momento certo para cruzar a via. Se no instante em que o agente se aproxima a vítima, em hora inoportuna, entra na pista, nada pode ser imputado ao agente.

Há situações especiais, entretanto, em que a confiança não pode ser absoluta. Quem vê uma bola em movimento na rua e uma criança correndo atrás dela, não pode confiar que a criança vá respeitar as regras de trânsito. Há nesse caso fundada razão para não acreditar que o outro (que a criança) vá também respeitar as regras de trânsito.

6) não há conduta desaprovada quando o bem jurídico lesado é disponível e a vítima dá seu consentimento válido: o risco criado, nesse contexto, torna-se permitido (consentido).

Exemplo: o dono de um relógio autoriza o agente a destruí-lo. O consentimento da vítima só exclui a tipicidade (em sua dimensão axiológica) quando: (a) é válido (dado por vítima com dezoito anos ou mais); (b) dado antes ou durante o fato; (c) o bem jurídico for disponível (patrimônio, honra, pequenas lesões etc.). No caso da eutanásia, não há que se falar (no nosso ordenamento jurídico) em consentimento válido. O risco criado pelo agente que mata a vítima é proibido (logo, responde pelo crime). De acordo com a jurisprudência brasileira, a eutanásia no Brasil é proibida (pode ser que responda o agente por homicídio privilegiado; é o máximo que se pode inferir dessa situação).

No âmbito dos crimes culposos, exige-se o consentimento em relação à conduta descuidada, não necessariamente em relação ao resultado. ?A?, imprudentemente, sugere que ?B? atravesse uma rodovia movimentada. ?B? conscientemente assume o risco (autocoloca-se em risco). Ao agente ?A? não se pode imputar o resultado, porque não criou o risco proibido.

7) não há risco proibido (risco desaprovado) em todas as situações inseridas por Zaffaroni na sua teoria da tipicidade conglobante: para esse autor, não há tipicidade quando a conduta é ?fomentada? ou ?autorizada? ou ?determinada? (criação de um dever jurídico de agir) pelo ordenamento jurídico. Se existe uma norma que fomenta ou determina ou autoriza uma conduta, o que está fomentado ou determinado ou autorizado por uma norma não pode estar proibido por outra.

Quanto às condutas ?fomentadas? (lesões esportivas, cirurgia médica curativa, etc.) o fundamento para excluir a tipicidade, portanto, é duplo: podemos nos valer para isso da teoria da tipicidade conglobante de Zaffaroni ou da teoria da desaprovação da conduta. É que as condutas fomentadas criam riscos permitidos e, nesse caso, fica excluída a desaprovação da conduta. Há, entretanto, na teoria de Zaffaroni uma peculiar situação de atipicidade: é o caso do estrito cumprimento de dever legal. A lógica é a seguinte: se existe uma norma que impõe (determina) uma conduta, o que está imposto por uma norma não pode estar proibido por outra (veremos isso com mais detalhes na seção pertinente à antijuridicidade). No caso do aborto sentimental ou humanitário (aborto permitido quando a gravidez resulta de estupro) estamos diante de uma causa de exclusão da tipicidade (porque se trata de risco permitido, autorizado CP, art. 128, II). Diga-se a mesma coisa em relação à imunidade parlamentar material. Em ambas as situações não é preciso fazer nenhum balanceamento de bens, por isso que se trata de causas excludentes da tipicidade (não da antijuridicidade).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br)

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