Interceptação telefônica – Breves considerações sobre a Lei 9.296/96

1) A inviolabilidade das comunicações telefônicas na CF

A Lei 9.296/96 regulamenta a parte final do artigo 5.º, inciso 12, da CF, que dispõe: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

Como se depreende do dispositivo constitucional, a inviolabilidade das comunicações telefônicas se insere na tutela dos direitos da personalidade, notadamente no direito à privacidade.

Francesco Carnelutti explica que o direito à privacidade se opõe ao da publicidade: a palavra público deriva de populus que alude à reunião de pessoas, já o vocábulo privado dá a idéia de separação, isto é, o indivíduo separado dos demais(1).

O direito de conversar livremente ao telefone é um direito da personalidade, porque, para o desenvolvimento pessoal, é imprescindível a troca livre e confidencial de idéias e de opiniões, sem a desconfiança de que outrem esteja ouvindo a conversa.

Entretanto, o direito à privacidade não é absoluto, podendo ser relativizado nas hipóteses taxativas da Lei 9.296/96.

2) Conceito de interceptação telefônica

É possível diferenciar interceptação telefônica de escuta telefônica e de gravação clandestina.

A interceptação se caracteriza quando um terceiro, estranho à conversa, capta a comunicação existente na passagem de um emitente para um destinatário, sem que ambos ou, pelo menos, um deles saiba.

Quando um deles conhece e consente, à interceptação telefônica dá-se o nome de escuta telefônica, que é espécie do gênero interceptação telefônica(2).

Por fim, a gravação clandestina ocorre quando um dos interlocutores grava a conversa sem o consentimento do outro (p. ex., gravações entabuladas entre seqüestradores, de um lado, e policiais e parentes da vítima, de outro, com o conhecimento dos últimos)(3).

3) Requisitos para a interceptação telefônica na Lei 9.296/96

A interceptação telefônica é excepcional, sendo autorizada somente se caracterizada a existência de cinco requisitos:

I) for utilizada para investigação criminal ou para instrução processual penal.

A Lei 9.296/96, ao se referir à investigação criminal, não exige a instalação prévia de inquérito policial(4).

Por outro lado, questão interessante é saber se, apurado mediante a interceptação o crime de corrupção passiva de funcionário público, tal prova poderia ser emprestada para o processo civil, a fim de que o Ministério Público pudesse, em ação civil pública por improbidade administrativa, obter o ressarcimento do erário público.

Parece-nos que não há ilicitude nessa prova, pois, uma vez rompido licitamente o sigilo telefônico, não se poderia deixar de aproveitar os elementos probatórios apurados, já que a origem da cognição não viola o direito constitucional à inviolabilidade das comunicações telefônicas(5). A utilização civil dessas informações é apenas um dos desdobramentos lógicos da responsabilidade do funcionário público.

II) mediante ordem judicial: trata-se da cláusula de reserva jurisdicional; a quebra do sigilo, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados na lei, constitui o crime previsto no artigo 10 da Lei 9.296/96.

A interceptação deve ser autorizada pelo juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça (art. 1.º, da Lei 9.296/96). Assim, somente o magistrado competente para processar a ação penal condenatória poderá deferir a medida cautelar incidental; contudo, tratando-se de medida cautelar preventiva, não haverá ilicitude na prova se o juiz (p. ex., federal), aparentemente competente, autorizar a interceptação telefônica, mas que, devido ao curso das investigações, revele-se incompetente em razão da matéria(6).

Embora o artigo 5.º da Lei 9.296/96 afirme que a diligência não pode perdurar por mais de quinze dias, prorrogáveis por igual período, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o prazo da interceptação telefônica é indeterminado, devendo perdurar enquanto forem relevantes para as investigações(7). Para isto, basta que o pedido de renovação seja acompanhado dos relatórios apresentados pela polícia, sendo desnecessário, a cada renovação, a transcrição das conversas.

Ademais, a interceptação telefônica é realizada em segredo de justiça, sendo que mesmo a ausência de ciência da defesa de sua realização não gera a nulidade da prova, já que este conhecimento inviabilizaria a investigação. Com efeito, malgrado a defesa tenha ciência da produção da prova somente após a conclusão da interceptação telefônica, isto não retira a validade da prova, não se podendo alegar que houve violação da garantia constitucional do contraditório que fica apenas postecipado(8).

iii) haver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal.

Vale ressaltar o seguinte problema: autorizada a interceptação para um determinado fato jurídico (p. ex., uma investigação de fraude fiscal), ficariam as circunstâncias conexas (p. ex., a comprovação de outros crimes como o de corrupção ou de falsidade) abrangidas pela autorização judicial?

Tal questão já foi objeto de julgamento do Superior Tribunal de Justiça que se manifestou positivamente em acórdão assim ementado: “Se, no curso da escuta telefônica – diferida para a apuração de delitos punidos exclusivamente com reclusão – são descobertos outros crimes conexos com aqueles, punidos com detenção, não há porque excluí-los, diante da possibilidade de existirem outras provas hábeis a embasar eventual condenação”(9).

O entendimento do STJ está correto, pois o magistrado, ao autorizar a diligência, não tem condições de saber quais as repercussões lógicas e causais que a investigação pode tomar(10).

IV) a prova não pode ser feita por outros meios disponíveis: este requisito denota a excepcionalidade da interceptação telefônica como meio de prova, devendo ser excluído quando houver outros caminhos para que a informação seja trazida aos autos.

Cabe ressaltar, todavia, que tanto a apreciação da existência de indícios razoáveis da autoria ou da participação em infração penal quanto a possibilidade de utilização de outros meios de prova não se coaduna com a via estreita do habeas corpus, já que o exame desses requisitos demandaria uma maior investigação probatória(11).

V) o fato investigado seja punido com pena de reclusão.

Sob este aspecto, contudo, surge a questão de se saber se crimes contra a honra ou de ameaça, que comumente são cometidos pela via telefônica, podem ser objeto de interceptação telefônica, embora sejam apenados com detenção.

A doutrina diverge sobre qual é a melhor exegese. De um lado, Lenio Luiz Streck afirma que o princípio da proporcionalidade não pode ser aplicado, sendo necessário modificar a lei, uma vez que as exceções somente devem ser interpretadas literalmente, não comportando exegese ampliativa(12). De outro lado, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho sustentam que o artigo 2.o, inciso III, da Lei 9.296/96 é inconstitucional, por violar o princípio da razoabilidade, devendo ser admitida a interceptação quando for o único meio de prova; asseveram, ainda, que, no direito estrangeiro, não há óbice similar a contida na legislação brasileira(13).

4) Conseqüências processuais da violação da Lei 9.296/96

A violação das comunicações telefônicas fora das hipóteses legais acarreta a ilegalidade ou o abuso do poder pela autoridade pública, passível inclusive de impetração de mandado de segurança, além da nulidade absoluta do processo, por ser a prova ilícita.

Ora, se o direito à privacidade não é absoluto, o direito à prova também encontra limitações na Constituição.

O artigo 5.º, inciso LVI, da CF, ao tornar inadmissível a prova ilícita, impôs uma limitação política à busca da verdade real. Afinal, como já afirmou o processualista colombiano Hernando Devís Echandia, o processo não é uma guerra onde os fins justificam os meios(14), mas um mecanismo civilizado de distribuição da justiça.

No entanto, ainda que a interceptação telefônica tenha sido obtida de forma ilícita, a ação penal não merece ser trancada, pela via do habeas corpus, ou a sentença condenatória ser anulada, com fundamento no artigo 5.º, inciso LVI, da CF, se a condenação estiver baseada em outras provas (p. ex., a gravação clandestina) obtidas de forma lícita(15).

Conclusão

A correta exegese e aplicação da Lei 9.296/96 se coloca na intersecção entre a pretensão investigativa do Ministério Público e a defesa dos direitos fundamentais. Logo, o respeito aos limites constitucionais permite, simultaneamente, que o parquet satisfaça a sua missão investigativa, em prol da defesa dos interesses sociais, sem, contudo, haver violação da esfera dos direitos da personalidade dos cidadãos.

Bibliografia

CARNELUTTI, Francesco. Diritto alla vita privata. Contributo alla teoria della libertà di stampa. In: Scritti giuridici in memoria di Piero Calamandrei. Vol. I. Padova: CEDAM, 1958.

ECHANDIA, Hernando Devís. Tratado general de la prueba judicial. Tomo I. 5.ª ed. Buenos Aires: Victor P. de Zavalía Editor, 1981.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Interceptações telefônicas e gravações clandestinas no processo penal. In: Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6.ª ed. São Paulo: RT, 1998.

STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. A Lei 9.296/96 e os seus reflexos penais e processuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997.

Notas

(1) Cfr. Diritto alla vita privata. Contributo alla teoria della libertà di stampa. In: Scritti giuridici in memoria di Piero Calamandrei. Vol. I. Padova: CEDAM, 1958. Pág. 140-1.

(2) Cfr. Ada Pellegrini Grinover. Interceptações telefônicas e gravações clandestinas no processo penal. In: Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. Pág. 63.

(3) A validade deste meio de prova já foi confirmada tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça: I) “Habeas corpus. Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com autorização de um dos interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da antijuridicidade. – Afastada a ilicitude de tal conduta – a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando o crime -, é ela, por via de conseqüência, lícita e, também conseqüentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o artigo 5.º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da intimidade (art. 5.º, X, da Carta Magna)” (STF – HC 74.678-SP – 1.ª Turma – rel. Min. Moreira Alves – j. 10.06.1997 – pub. DJU 15.08.1997, pág. 37.036). Ver, também, HC 75.261-MG – 1.ª Turma – rel. Min. Octavio Gallotti – j. 24.06.1997 – pub. DJU 22.08.97, pág. 38.764; II)”Não há falar em ilicitude da prova que se consubstancia na gravação de conversação telefônica por um dos interlocutores, vítima, sem o conhecimento do outro, agente do crime” (RHC 12.266-SP – 6.ª T. – rel. Min. Hamilton Carvalhido – j. 09.09.2003 – pub. DJU 20.10.2003, pág. 298).

(4) Cfr. STJ – HC 20.087-SP – 5.ª T. – rel. Min. Gilson Dipp – j. 19.08.2003 – pub. DJU 29.09.2003, pág. 285.

(5) Nesse sentido, cfr.: Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho. As nulidades no processo penal. 6.ª ed. São Paulo: RT, 1998. Pág. 194.

(6) “Interceptação telefônica: exigência de autorização do ´juiz competente da ação principal´ (L. 9296/96, art. 1.º): inteligência. 1. Se se cuida de obter a autorização para a interceptação telefônica no curso de ação penal, não suscita dúvidas a regra da competência do art. 1.º da L. 9296/96: só ao juiz da ação penal condenatória – e que dirige toda a instrução -, caberá deferir a medida cautelar incidente. 2. Quando, no entanto, a interceptação telefônica constituir medida cautelar preventiva, ainda no curso das investigações criminais, a mesma norma de competência há de ser entendida e aplicada com temperamentos, para não resultar em absurdos patentes: aí, o ponto de partida à determinação da competência para a ordem judicial de interceptação – não podendo ser o fato imputado, que só a denúncia, eventual e futura, precisará – haverá de ser o fato suspeitado, objeto dos procedimentos investigatórios em curso. 3. Não induz à ilicitude da prova resultante da interceptação telefônica que a autorização provenha de Juiz Federal – aparentemente competente, à vista do objeto das investigações policiais em curso, ao tempo da decisão – que, posteriormente, se haja declarado incompetente, à vista do andamento delas” (STF – HC 81.260-ES – Tribunal Pleno – rel. Min. Sepúlveda da Pertence – j. 14.11.2001 – pub. DJU 19.04.2002, pág. 48).

(7) RHC 13.274-RS – 5.ª T. – rel. Min. Gilson Dipp – j. 19.08.2003 – pub. DJU 29.09.2003, pág. 276.

(8)Cfr. STJ – HC 30.698-RS – 5.ª T. – rel. Minª Laurita Vaz – j. 04.11.2003 – pub. DJU 01.12.2003, pág. 387.

(9) RHC 13.274-RS – 5.ª T. – rel. Min. Gilson Dipp – j. 19.08.2003 – pub. DJU 29.09.2003, pág. 276.

(10) Cfr. Lenio Luiz Streck. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. A Lei 9.296/96 e os seus reflexos penais e processuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997. Pág. 93-4 e 99.

(11) Cfr. STJ – RHC 9.555-RJ – 6.ª T. – rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 18.05.2000 – pub. DJU 12.06.2000, pág. 135.

(12) Op. cit. Pág. 49-51 e 58-60.

(13) Op. cit. Pág. 182-3.

(14) Cfr. Tratado general de la prueba judicial. Tomo I. 5.ª ed. Buenos Aires: Victor P. de Zavalía Editor, 1981. Pág. 539.

(15) Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “Considerando que existem outros elementos probatórios que justificam a proposição da ação penal, principalmente a prova testemunhal e, também, a gravação de conversa telefônica realizada pela própria vítima, não há que se perquirir acerca do trancamento da ação penal, apenas e tão-somente, porque os elementos probatórios atinentes à interceptação telefônica incorrem em eventual ilicitude” (HC 23.891-PA – 5.ª T. – rel. Min. Félix Fischer – j. 23.09.2003 – pub. DJU 28.10.2003, pág. 308).

Eduardo Cambi

é mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Civil da PUCPR e dos cursos de mestrado da Unisul e da Unespar. Assessor jurídico do TJ/PR.

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