No dia 28 de junho último, ao encerramento do primeiro semestre legislativo, a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, acabou por aprovar um substitutivo ao Projeto de Lei N.º 6.295/2002, que prevê alteração na redação do art 84, do Código de Processo Penal.

No seu texto original, de autoria do Deputado Bonifácio de Andrade (PSDB/MG) o projeto restabelecia parcialmente o teor da recém-cancelada Súmula n.º 394 do STF (“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”). Consta no aludido texto que, em matéria criminal, praticado o ato delituoso no exercício do cargo ou a pretexto de exercê-lo, os agentes públicos (v.g. deputados, senadores, prefeitos, ministros, governadores, presidente, magistrados, membros do Ministério Público), continuarão a ter a prerrogativa de foro para julgamento junto ao STF, STJ,TRF e TJ, conforme o cargo ou mandato, ainda que o inquérito ou ação penal sejam iniciados após a cessação do exercício funcional. O diferencial está em que excluiu-se do dispositivo proposto o delito comum.

Não obstante o cancelamento daquela Súmula do STF tenha sido recebido como um avanço pela comunidade forense, agora, contra tal entendimento, investe o legislador mediante texto de lei, com o claro propósito de restabelecer o privilégio de foro, ainda que o inquérito ou ação penal sejam iniciados após a cessão do exercício da função pública.

Alude-se na justificativa, sobretudo, que, para maior tranqüilidade no exercício do cargo ou mandato, a garantia de foro especial, que concerne à função pública e não à pessoa, deve ser assegurada mesmo após cessada aquela atividade, repisando que os tribunais, pela experiência e capacidade de resistir às pressões, teriam maior isenção no julgamento.

Além dessa alteração, paradoxalmente, mediante proposição do Deputado André Benassi (PSDB/SP), inseriu-se no texto o parágrafo 2.o, estabelecendo que a ação de improbidade administrativa, de natureza cível, objeto da Lei N.º 8.429/92 , será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente os agentes públicos, na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública.

A sociedade precisa saber que a alteração proposta significa mais um retrocesso tendente a dificultar a persecução dos ímprobos. A Medida Provisória n.º 2088, editada originalmente no crepúsculo do ano 2000, entre as festas natalinas e início de novo século, já criou a malsinada notificação antes da citação. Nada mais representa do que um imbróglio processual que se presta a ensejar morosidade na tramitação da ação civil pública. E agora, num flagrante descompasso com a idéia dominante de se restringir o foro privilegiado, querem alguns legisladores ampliar o foro por prerrogativa de função, estatuindo que a ação civil pública para ressarcimento ao erário público e imposição de sanções deve ser também proposta perante o tribunal respectivo.

Na justificativa, o ilustre parlamentar apenas enfatiza que a Lei de improbidade administrativa ” prevê sanções graves e, devido à relevância das penas políticas, além da ação de ressarcimento ser imprescritível(art. 37, parág. 5.o, da CF) é ponderável pelas mesmas razões acima expostas, que haja continuidade da competência por prerrogativa de foro“. Note-se que o autor do substitutivo, equivocadamente, recomenda a continuidade da competência por prerrogativa de foro em matéria de improbidade administrativa, como se os agentes políticos em referência já tivessem a prerrogativa, enquanto na função.

Obviamente, os tribunais, pela experiência e sabedoria de seus integrantes, poderiam assimilar mais esta atribuição. No entanto, em razão de sua estrutura organizacional, voltada originariamente para servir como instância recursal, não teriam a mesma desenvoltura para o desencadeamento da instrução probatória, com todos os seus incidentes, já que os processos por improbidade administrativa de todas as comarcas seguramente abarrotariam seus gabinetes. Fatalmente, a produção de inúmeras provas seria delegada aos juízes das comarcas de origem. De conseqüência, em matéria de relevante interesse público, o julgador ficaria distante da prova obtida. O juiz deprecado, por sua vez, distante de todo o conteúdo processual, certamente teria dificuldades em colher eficazmente a prova na fase instrutória. Os entraves processuais inerentes, posto que via de regra nesses casos há envolvimento de inúmeras pessoas, acarretariam excessiva demora nos deslindes das ações, contribuindo ainda mais para a sensação de impunidade que grassa no país. Dificuldade semelhante teria o Ministério Público (federal e estadual) vez que a missão hoje confiada a centenas de promotores e procuradores, seria exercida através de seu Procurador-Geral, a quem incumbiria a tarefa de propor as ações civis públicas.

A preconizada maior isenção dos tribunais, a que alude a justificativa, poderia ser exercitada em grau de recurso. Não há necessidade, para tanto, de se eliminar o julgamento pelo juiz monocrático. É juridicamente inaceitável que venha a se consagrar, em texto de lei, uma interpretação extensiva do permissivo legal que estabelece foro especial ,de natureza criminal, para estender sua aplicação à área cível.

Uma vez mais, como já ocorreu com a denominada “lei mordaça”, ao invés de se criar mecanismos para agilizar e combater eficazmente a corrupção, depara-se com medidas de proteção ao agente público faltoso, ensejando morosidade e aumento da impunidade.

O clamor popular pugna pelo incessante combate à corrupção na administração pública. O Ministério Público, com todas as dificuldades estruturais, vergando-se ao seu dever constitucional de promover a defesa do patrimônio público, não raro injustamente fustigado pelos envolvidos, vem contribuindo para restabelecer a crença de que a nefasta corrosão dos cofres públicos pode ser, senão extirpada, pelo menos diminuída. O judiciário, ao seu turno, tem propiciado respostas adequadas aos corruptos, fortalecendo-se pela aplicação soberana da lei, com isenção e independência.

Esperemos o rumo a ser apontado pelos parlamentares! Continuaremos a sonhar?

Antônio Winkert Souza é promotor de Justiça de Londrina.

continua após a publicidade

continua após a publicidade