Imensa infelicidade

Descrença generalizada nos agentes políticos em grau máximo é algo que se aproxima da plena realização. Ou seja, quanto mais prometem os dirigentes públicos menos a população acredita.

Pesquisa realizada nos Estados Unidos pela Time/CNN, revelou que 51% da população tem dúvidas sobre a capacidade do presidente George W. Bush de dirigir o país. Outro líder às voltas com a insatisfação popular é o primeiro-ministro Tony Blair (39% querem que ele renuncie imediatamente). A crise gerada pela segunda guerra do Iraque aumentou com o rumor da morte misteriosa do cientista inglês David Kelly, alto funcionário público tido como uma das principais fontes da série de reportagens da BBC sobre a manipulação de informações – nem sempre verdadeiras – utilizadas para justificar a invasão daquele país pelas tropas da coalisão anglo-americana.

Segundo a imprensa, Kelly teria sido pressionado pelo governo a “liberar” informes falsos que indicavam a existência de armas químicas em poder do Iraque, onde havia trabalhado como inspetor da ONU. A BBC contou uma história muito diferente daquela forjada para iniciar a guerra, admitindo-se que o testemunho de Kelly e outros cientistas foi extremamente significativo para lançar o primeiro-ministro nessa situação ambígua. Agora, ele está morto e ninguém sabe, ao certo, o que aconteceu. O enredo é parecido com as tramas romanescas de Scott Turow e Robert Ludlum.

De repente, os homens que deram sinal verde para a invasão, deflagrando a guerra que ceifou milhares de vidas e agora semeia o terror entre soldados norte-americanos que permanecem em território iraquiano, por causa dos ataques de assassinos anônimos, tiveram certo alívio com o anúncio da eliminação dos filhos de Saddam, Uday e Qusay. Contudo, até o momento em que escrevo, a Defesa norte-americana estava só na promessa de divulgar provas reais do que está afirmando. O secretário Donald Rumsfeld avisou que ia mostrar fotos dos corpos.

O chefe do mais bem armado exército do mundo talvez consiga desviar por alguns dias a atenção da mídia sobre soldados mortos a arma branca ou alvejados por livre atiradores, em operações relâmpago que visam espalhar terror, pânico e desmoralização na tropa pretensamente vitoriosa. Por outro lado, o tormento não pára de crescer, pois a imprensa apresenta cada vez maior evidência quanto à “arrumação” de dados que conferiam ao presidente Bush a autoridade de ordenar o ataque.

Além de nada ter a comemorar, Bush está diante do maior fracasso que se tem notícia se tiver de ordenar a retirada da tropa, deixando assim caminho aberto para o caos e a anarquia entre o povo iraquiano, que dificilmente conseguirá superar suas históricas fissuras.

Apenas para lembrar um repugnante fato histórico, lembremos da vendeta aplicada pelos chefes nazistas nos países ocupados, toda vez que alemães eram mortos em emboscadas planejadas por comandos clandestinos, estipulando um número de vítimas para cada soldado alemão morto. Definitivamente, tal perversidade deve ser abominável até para o mais cruel dos estrategistas da guerra moderna, pelo potencial de ódio que disseminaria no mundo e, ainda, pelos trágicos reflexos quanto à segurança interna da população do país que tomasse atitude de semelhante proporção.

Diante do quadro que se observa, fácil é deduzir o que nos reserva o futuro imediato. Inteira razão tinham intelectuais que há décadas enunciaram o conceito do desconcerto do mundo, admirável fórmula que prenunciava, em parte, a gravidade do conjunto de patologias sociopolíticas que começava a grassar. Sérgio Paulo Rouanet, brilhante intelectual brasileiro, dizia que o mundo assiste hoje o desfile de tendências “que fazem prever o advento de um novo irracionalismo”. Um irracionalismo, a seu ver muio pior que o anterior, vez que está unicamente comprometido com o exercício do poder, sem levar em consideração realidades transcendentes como pátria, religião, família e Estado.

Enquanto naves tripuladas desbravam o infinito e astronautas flutuam no espaço, quem anota é Carlos Felipe Moisés, cá embaixo o desconcerto do mundo fez-nos conviver com Hiroshima, Vietnã, Biafra, Sarajevo, Afeganistão e Timor Leste, entre outras misérias. Basta citar figuras que mancharam o século passado: Hitler, Stalin, Perón, Somoza, Pinochet, Videla, Pol Pot, Idi Amin, Ceacescu e tantos outros governantes sangüinários, corruptos ou ignorantes.

Para contrabalançar o acúmulo de mau agouro houve, infelizmente, poucos personagens com moral para mostrar aos povos oprimidos e ao mundo – alguns com o sacrifício da vida – a felonia oriunda dos palácios e bunkers habitados por aquela gente. Há espaço para raras figuras como Trotski, Zapata, Ho Chi Min, Pretes, Guevara, Allende, Mandela…

Carlos Felipe está certo ao afirmar que temos um “mundo em desordem, palco de absurdos e desatinos, em que tudo semelha ter perdido o rumo”. Na verdade, o crítico localiza o início desse processo no século XIX, quando a decadência, o mercantilismo, a luta pelo poder, a redução do ser humano à condição de máquina e a artificialização de todas as formas de vida eram os marcos visíveis do que se chamou, apropriadamente, desconcerto do mundo.

Um belo exemplo dessa absurdidade deu-nos o pintor Paul Gaughin, que abandonou a França para viver entre nativos do Taiti. Carlos Felipe diz que o artista seguia a esteira de desesperança aberta por Nietzsche e desdobrada por Oswald Spengler, Max Nordau, George Gusdorf, Nicolai Berdiaeff e outros.

A suma do que pensavam é assim exposta: “A humanidade está em decadência, o homem desumanizou-se, é preciso reaprender o humano”.

O gesto simbólico de Gaughin mesmo seguido por um número crescente de antropólogos que viajaram aos rincões do globo “a fim de conhecer de perto com um misto de deslumbramento e apreensão, o homem primitivo, o selvagem, o homem anterior à desastrada civilização de que tanto nos orgulhamos e que tanto nos custou”, apesar do esforço científico, deu em nada.

O homem continua sendo imensamente infeliz.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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