Hemorragia de MPs

Já dizia um francês chamado Charles de Secondat (1689-1755), mais conhecido como “Baron de La Brède et de Montesquieu”: se você tem muitas leis, não tem nenhuma. A lembrança do pensador, creditada ao presidente do Senado, José Sarney, tem endereço certo na atual quadra política brasileira: o Executivo. Em crise cada vez mais funda, este pouco executa e muito regula. Mais que o Congresso Nacional. Desde que assumiu a cadeira de presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva já editou 74 medidas provisórias, média de uma por semana.

Se o ritmo dos primeiros quinze meses de governo for mantido, Lula chegará ao final dos quatro anos de mandato com o recorde de 230 medidas provisórias. Ganharia do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que editou 160 MPs no primeiro mandato e 103 no segundo. Ganharia também de Itamar Franco, que assinou 142 atos provisórios, e do próprio Sarney, que editou 125 MPs.

Segundo a estatística conhecida, desde que a MP foi instituída, em substituição aos decretos-leis do tempo dos governos militares, a mão pesada dos presidentes, ao todo, editou até aqui 693 medidas provisórias. Para manter sua relativa eficácia, elas foram reeditadas 5.541 vezes, das quais apenas 511 (mas ainda é um número exorbitante) foram convertidas em leis. Sem considerar outros aspectos, a produção excessiva de normas nos gabinetes do Executivo, muitas delas equivocadas e eivadas de oportunismos, constitui afronta ao Poder Legislativo, que existe para legislar.

Para o ora reclamante Sarney, com o qual temos que concordar, o problema do Brasil hoje não é a falta de leis, mas o excesso delas. Esse excesso dificulta o acesso à legislação, “porque uma remete a um inciso, outra remete a um artigo, outra remete a uma outra lei” e assim por diante. O emaranhado legislativo, além da dificuldade alegada pelo presidente do Senado, tem outros graves inconvenientes no campo da cidadania. Ninguém pode alegar desconhecimento da lei, mas nas circunstâncias atuais nem mesmo experientes advogados seriam capazes de assegurar o conhecimento de todas.

Conforme se sabe, a edição de uma medida provisória seria, sempre, um recurso extremo, e do qual o Executivo poderia lançar mão apenas em casos de relevância e urgência, tendo em vista os interesses máximos da nação. Mas segundo o líder do PDT, Jefferson Peres, a maioria (90%) não é nem urgente, nem versa sobre matéria relevante. Às vezes atende a caprichos muito localizados, freqüentemente se apresenta como o “samba do crioulo doido” ao tratar de vários assuntos ao mesmo tempo, de forma casuística, para não dizer outra coisa.

Mas o mais grave de tudo isso é que “o poder de legislar do Congresso foi usurpado pelo Poder Executivo com a omissão e cumplicidade do Congresso”, segundo observa, sem muita originalidade, o mesmo Peres. Ao tempo de FHC tentou-se colocar fim a essa verdadeira hemorragia de MPs, prolongada então sempre pela possibilidade de reedição ad infinitum. Uma das medidas adotadas foi obrigar o Congresso a apreciar o ato provisório através da chamada “obstrução de pauta”. Não se sabe se era pior a situação anterior, ou a atual, quando os legisladores são forçados, queiram ou não, a largar outro trabalho para se debruçar sobre vontades, necessidades ou simples caprichos advindos do Executivo de forma improvisada. Muitas vezes, isso ocorre enquanto o Congresso estuda o mesmo assunto em profundidade, como recentemente ocorreu com o caso da regulamentação dos bingos. Ou com a reforma tributária e o aumento da alíquota da Cofins…

O atual protesto do Senado, embora decorrente de conflitos internos dentro da base aliada do próprio governo, tem sentido e precisa ser levado em conta para o fortalecimento de nosso processo democrático. Governar ao sabor dos humores do momento e sem levar em conta as atribuições específicas das instituições é estilo mais apropriado a ditadores ou déspotas. Não serve para o modelo brasileiro.

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