Fim da polêmica: Tacrimsp decide pela ilegalidade do termo circunstanciado lavrado pela PM

Interesses corporativistas

Após anos de ilegalidades e desrespeito à Carta Magna, a questão da competência para a lavratura dos termos circunstanciados tende a se pacificar após histórica decisão do TACRIMSP em 18/12/2002 no R.S.E. n.º 1.333.219-3. Desde que a Lei n.º 9.099/95 entrou em vigor, os ânimos se acirraram entre a Polícia Militar e a Civil. A disputa era a competência para a lavratura e encaminhamento dos termos circunstanciados ao Juizado Especial Criminal. As disposi-ções do Código de Processo Penal e da própria Constituição Federal foram “re-interpretadas” para atender aos interesses corporativistas dos oficiais da PM. Conceitos básicos e até então isentos de dúvidas, como o de “autoridade policial”, tornaram-se polêmicos, dando margem a intensos debates e discussões acadêmicas. Embora juristas de alto gabarito tenham se posicionado contra a ilegalidade, como Fernando da Costa Tourinho Filho, as “forças ocultas” ganharam fôlego e contaram com a adesão de importantes segmentos do País. O provimento n.º 758/01 do Conselho Superior da Magistratura paulista acabou coroando a inconstitucionalidade. Até agora.

Como dissemos, o CSM “autorizou” os juízes paulistas a receberem os termos circunstanciados elaborados por policial militar. O argumento do referido provimento era dar força aos princípios da celeridade e informalidade, conforme dispunha o art. 2.º da Lei n.º 9.099/95. Ora, não podemos dar vazão à inconstitucionalidade com a justificativa de que se deve prestigiar a simplicidade e a economia processual. Caso contrário, adotando tal linha de pensamento e dando força à lógica do absurdo, em breve começaremos a defender o oferecimento da denúncia pelos delegados de polícia, afastando o excessivo apego às formas do processo. O que se quer dizer é que não podemos rasgar a Constituição Federal para prestigiar interesses corporativistas.

A própria Lei n.º 9.099/95 é bem clara no tocante à definição do termo “autoridade policial”. Ao dizer que, no art. 92, “aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Penal e de Processo Penal”, a própria lei dos Juizados Especiais Criminais não dá margem a nenhuma dúvida. No estatuto processual penal, a expressão “autoridade policial” refere-se, exclusivamente, aos delegados de polícia, dirigentes da polícia judiciária, competente para a apuração das infrações penais (sejam elas graves ou de menor potencial ofensivo). Além disso, o art. 144, § 4.º da CF/88 define que “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Interpretar o preceito constitucional de maneira diferente só é possível se há algum interesse corporativista em jogo.

A ilegalidade e suas implicações no Processo Penal

Partindo dessa argumentação, Luiz Carlos Agudo encontrou outras implicações caso se entendesse que os oficiais da PM também poderiam lavrar termos circunstanciados. Assim, acaso esse absurdo entendimento prevalecesse, como requisitar as perícias nos crimes de menor potencial ofensivo? Segundo o Código de Processo Penal, somente a autoridade policial ou judicial é que podem requisitar as perícias necessárias ao descobrimento da verdade real. Dizer que o descobrimento da verdade real não é a intenção no Juizado Especial Criminal seria dar margem aos mal-intencionados e burladores da lei. Dessa forma, escreve o ilustre jurista que “…se o policial militar, no entendimento que vem prevalecendo ao arrepio da lei, é competente para lavrar termo circunstanciado e requisitar as perícias nas infrações de menor potencial, ele passa a exercer funções de polícia judiciária, logo, passa a praticar atos ilegais e inconstitucionais” (Ilegalidade do termo circunstanciado lavrado por agente policial militar. Questão lógica. ilógicos são os motivos justificadores da ilegalidade, disponível em www.ibccrim.org.br).

Também há outros motivos que expõe toda a ilogicidade da lavratura dos termos circunstanciados pela PM. Assim, p. ex., diz a lei dos Juizados Especiais Criminais que “ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança”. Então, surge a questão: acaso o autor do fato recuse-se a assinar o termo de compromisso lavrado por policial militar poderá este presidir o auto de prisão em flagrante ou conceder fiança? Se a resposta for afirmativa, teremos, então, que a autoridade policial, para fins dessa lei, é qualquer agente policial. Se, entretanto, a resposta for negativa, prevalece em vigor todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Outra questão polêmica é o enquadramento legal dos fatos pelos policiais militares. É sabido de todos que os militares, em geral, não têm formação jurídica nem preparo para a tipificação legal das infrações penais. É por esse motivo que a Constituição Federal estabeleceu que as polícias civis serão dirigidas por delegados de polícia de carreira, isto é, bacharéis em Direitos concursados e preparados para exercerem suas funções quase judicativas. Citando um trecho do histórico julgado do Tacrimsp sobre essa questão, isto é, a falta de conhecimento técnico necessário dos policiais militares para tal função, expôs o relator Samuel Júnior o seguinte: “…não se pode descartar a hipótese de, por falta de conhecimento técnico necessário, uma tentativa de homicídio possa ser tratada como mera lesão de menor potencial ofensivo, além de outras situações e que, posteriormente, por falta de preservação do local e de devida investigação se percam as provas necessárias”. É por isso que os meros condutores de ocorrências não podem, jamais, exercer funções de polícia judiciária. Aliás, sobre essas sérias complica-ções posteriores que surgiriam no curso do processo penal ou na investigação policial, vários autores já haviam avisado, entre eles, Fernando da Costa Tourinho Filho, Carlos Alberto Marchi de Queiroz, Luís Carlos Agudo, entre outros.

Fim da polêmica: o julgadohistórico do Tacrimsp

Publicado parcialmente no repertório de Jurisprudência do Boletim Ibccrim 126, de maio/2003, a histórica decisão do TACRIMSP no R.S.E. n.º 1.333.219/3 demonstrou que a lavratura dos termos circunstanciados é de competência exclusiva das polícias civis. A decisão também firmou o entendimento de que o conceito de “autoridade policial” da Lei n. 9.099/95 deve ser o mesmo do Código de Processo Penal e da Constituição Federal, isto é, abrange somente os delegados de polícia de carreira. Sobre o Provimento n.º 758/01 do CSM, a decisão se manifestou da seguinte maneira: “…o Provimento não pode prevalecer, porque além de não atender às finalidades previstas no Regimento Interno do Tribunal, acabou intervindo, reconhecendo e outorgando à Polícia Militar poderes que não lhes foram assegurados na Constituição Federal”.

Após definir poder de polícia, polícia administrativa e polícia judiciária, o julgado conclui que “A vocação, a formação e o treinamento, inclusive cob o prisma psicossocial, são hoje, ainda, totalmente diferentes. Os policiais civis (delegados, escrivães, investigadores, etc.), são e quem sabe deveriam ser até mais, a antítese do posicionamento, preparo e orientação dos militares. Estes são preparados para o confronto, para situações limites e onde o extermínio do inimigo é a glória da vitória, enquanto que aqueles, em especial os delegados de Polícia, têm formação jurídica e, por isso, se constituem na autoridade policial a que se refere a Lei 9.099/95. (…) Portanto, pode-se dizer que, em princípio, o militar é profissional mais das armas que do Direito, o que basta para demonstrar que não estão preparados para exercer qualquer atividade, por mínima que seja, da polícia judiciária”.

Por fim, a decisão confere habeas corpus para anular termo circunstanciado lavrado por policial militar e firma o entendimento de que “Os crimes definidos como de menor potencial ofensivo na Lei 9.099/95, devem ser apurados e ter os respectivos e necessários termos lavrados pela Polícia Civil e nunca pela Militar”. Agora, após tantos anos de argumentação absurda, a questão deve se pacificar. Como diria o ilustre relator, que se cumpra a lei e a Constituição Federal! Que os interesses corporativistas obscuros cessem ante o Estado Democrático de Direito.

Átila Da Rold Roesler

é delegado de Polícia/PR, membro do Ibccrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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