Fernanda Guerrart eLuiz Fernando Bubiniak

As políticas de "ações afirmativas" e, em específico, o tema da implantação do sistema de cotas destinadas aos afro-descendentes no ensino superior são assuntos que têm gerado muita discussão e polêmica na sociedade brasileira, porém, a grande maioria da população ainda não tem conhecimento de que consistem essas políticas. Segundo Joaquim Barbosa Gomes, membro do Ministério Público Federal brasileiro, as ações afirmativas "consistem em políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física."

As ações afirmativas são, portanto, iniciativas que visam à inclusão social de determinados grupos considerados "excluídos" na sociedade e consistem em várias frentes Ä como o resgate da identidade cultural e étnica das minorias historicamente discriminadas e as oportunidades para os menos favorecidos, tanto no mercado de trabalho como nas instituições de ensino. Constituem um dos instrumentos de promoção da cidadania, envolvendo ONG’s, escolas e empresas através de programas, cursos e Ä o que é mais conhecido Ä o sistema de cotas.

As ações afirmativas (positive actions) começaram nos Estados Unidos, na década de 60. Empresas públicas, Universidades e, mais tarde, empresas privadas passaram a reservar um percentual de suas vagas para atender às mulheres e à população negra. Segundo o Instituto Raça e Pobreza da Universidade de Minesota, as políticas de ações afirmativas fizeram a classe média negra norte-americana dobrar em 20 anos.

O Brasil já vem adotando o sistema de cotas em vários setores e a sociedade tem acolhido tais políticas com simpatia. Para exemplificar alguns casos onde a implantação de cotas teve sucesso, podemos citar os partidos políticos, onde foram criadas cotas de, no mínimo, 25% para as mulheres. Em 1992 (antes das cotas), havia 1.700 mulheres prefeitas e em 1997 (depois das cotas) esse número passou para mais de 5.000 mulheres. Da mesma forma, houve um percentual de oportunidades para os portadores de deficiências físicas nas empresas, conforme disposto em lei (C.F, art.37, VIII; Lei 8.112/90, art 5.º, § 2.º; Lei 8.213/91, art 93) Ä principalmente nas áreas de atendimento telefônico Ä sem que a qualidade dos serviços oferecidos fosse afetada.

Ora, se as mulheres e os portadores de deficiência são grupos que sofrem discriminação na sociedade, podemos dizer que merecem um tratamento diferenciado Ä que podemos chamar de "discriminação positiva", ou seja, "tratar diferentemente os desiguais". Da mesma forma, os afro-descendentes também são alvo freqüente de discriminação e preconceito. A idéia da criação das cotas no ensino superior surgiu justamente para suprir de forma imediata essa discriminação, afinal, existe uma dívida histórica da sociedade brasileira para com os negros, devido ao fato da população negra ter sido afastada de benefícios e condições de ascensão social desde o período colonial. Em vez de promoverem a capacitação dos negros após a abolição da escravidão, estimularam a imigração européia. Os europeus chegaram pobres, mas com o tempo tiveram muitos ganhos. Já os antigos escravos permanecem sem acesso à educação e nos postos mais baixos de trabalho até os dias de hoje…

É muito fácil perceber o motivo da implantação das cotas no ensino superior, visto que, em meio à multidão de alunos que adentram em nossas Universidades, quase não encontramos universitários afro-descendentes (são por volta de 8%). Porém, o que se percebe em nossa sociedade Ä principalmente no meio estudantil Ä é uma grande dificuldade em se aceitar um tratamento diferenciado para os afro-descendentes, sendo a alegação mais comum a de que todos possuem a mesma capacidade de serem submetidos a um vestibular e adentrarem em uma Universidade. Desta forma, a reserva de vagas para um determinado número de pessoas é injusta. Outros até afirmam que a discriminação racial no Brasil não existe e que, por razão disso, a "discriminação positiva" se torna desnecessária.

As polêmicas aumentaram quando foram editadas leis estaduais reservando cotas para alunos negros e pardos nas Universidades públicas Ä como no Rio de Janeiro, onde foram instituídas cotas de até 40% no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense. Na Universidade Federal do Paraná, recentemente foram aprovadas cotas de 20% para afro-descendentes, além de cotas para índios e para alunos oriundos de escolas públicas. Através dos dados oferecidos pelo IBGE sobre a educação superior no Brasil, observamos que existe uma nítida diferença entre brancos e negros no acesso às Universidades. Isso comprova a necessidade de se tomar algumas medidas para que haja um "nivelamento" das oportunidades de acesso, principalmente nas Universidades públicas. O que já vem sendo feito no Rio de Janeiro e tem obtido bons resultados, além da implementação do sistema de cotas nas Universidades públicas, é a abertura de cursos pré-vestibulares para afro-descendentes Ä que, no ano passado, exibiram uma aprovação em torno de 30%, entre Universidades públicas e particulares. Em Curitiba, essa idéia também está ganhando espaço através dos movimentos negros.

Em entrevista com o dr. Egon Bockmann Moreira e dr. Marçal Justen Filho Ä professores da Faculdade de Direito da UFPR, onde se constata um número bastante reduzido de alunos afro-descendentes Ä obtivemos opiniões favoráveis à implantação do sistema de cotas. Dr. Egon reafirma que a educação é dever do Estado, com previsão Constitucional expressa (Artigo 205 e seguintes da CF/88) e que o Estado tem deveres ativos no sentido de promover a igualdade entre as pessoas e a dignidade da pessoa humana. Para tanto, deve adotar condutas que dêem cumprimento à Constituição. Uma dessas condutas pode ser compreendida no sistema de cotas para as Universidades.

Dr. Marçal acredita que as cotas para minorias podem gerar dois efeitos extremamente desejáveis. O primeiro consiste na possibilidade de acesso à Universidade para indivíduos que, de outro modo, não conseguiriam tal. O segundo se relaciona com um efeito multiplicador, não apenas da riqueza econômica, mas do próprio conhecimento.

Dr. José Borges Neto Ä diretor do Departamento de Humanas da UFPR e conselheiro relator da comissão encarregada de definir plano de metas de inclusão social para a Universidade Federal do Paraná Ä admite que há desigualdades no processo seletivo da Universidade e que o vestibular não é igual para todos. Para ele, o principal motivo para ter implantado o sistema de cotas é a tentativa de democratizar o acesso à UFPR, valorizando as diferenças entre os principais grupos da sociedade.

Afirma, também, que o vestibular valoriza mais a técnica do que o conhecimento em si dos alunos e aponta esta como a principal causa dos alunos de escolas particulares obterem melhor desempenho no processo seletivo. Logo, é importante para a Universidade receber alunos oriundos de escola pública e que algumas conseqüências, como a mudança de alunos de escolas particulares para públicas, pode ser algo bom para a sociedade. Quanto aos eventuais problemas Ä como o fato da discriminação aumentar dentro da própria instituição Ä seriam apenas reflexos do que já existe na sociedade. Não vê a necessidade de bolsas de permanência para os alunos atendidos pelo sistema das cotas pois, segundo ele, este sistema não vai abolir a seleção de candidatos.

Evandro Piza Ä integrante da comissão encarregada de definir plano de metas de inclusão social para a Universidade Federal do Paraná e professor de Direito vê a política de cotas como uma forma de combate ao racismo, permitindo maior acesso e oportunidades aos negros. Afirma que a reforma do ensino é importante e que deve começar da Universidade, pois assim trará maiores resultados no futuro, mesmo porque, para reformar o ensino fundamental seria necessário capital político Ä que está no ensino superior.

Segundo Pedro Rodolfo Bode de Moraes, "o racismo curitibano possui este aspecto peculiar, ele invisibiliza uma parte significativa de sua população e assim não há por que com ela se preocupar Ä uma vez que inexiste."

É preciso que haja uma conscientização nacional com relação às políticas afirmativas no Brasil para que possamos ver ao longe um horizonte para a igualdade social, econômica e cultural em nosso país e, conforme fala a voz do povo brasileiro Ä a Constituição Federal Ä "construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

Fernanda Guerrart e Luiz Fernando Bubiniak são acadêmicos de Direito das Faculdades Integradas Curitiba.

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