a) Introdução

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Os filmes Mar adentro (que conta a história de Ramón Sampedro, que lutou até o último dia de sua vida para legalizar a eutanásia na Espanha) e Menina de ouro reacenderam, em 2005, a velha polêmica em torno da eutanásia, que foi retomada, no final de 2006, com a morte do poeta e escritor italiano Piergiorgio Welby. Antes, em 2003, grande celeuma já havia causado a morte de Vicent Humbert, um francês de 22 anos (que morreu com a ajuda da mãe e do seu médico).

Em nossa opinião, dono da vida, o ser humano deve ser também, dentro de determinadas circunstâncias e segundo certos limites, o dono da sua própria morte. Não há nenhuma censura (reprovação) ética ou jurídica na chamada ?morte digna?, que é a morte desejada por quem já não tem mais possibilidade de vida e que, em estado terminal, está sofrendo muito. A morte nessas circunstâncias, rodeada de vários cuidados (para que não haja abuso nunca), não se apresenta como uma morte arbitrária, ou seja, não gera um resultado jurídico desvalioso, ao contrário, é uma morte ?digna?, constitucionalmente incensurável.

b) Conceitos

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Eutanásia ativa significa praticar um ato lesivo, dentro de certas circunstâncias e condições, que conduz à morte desejada pelo próprio paciente terminal (injeção letal, por exemplo). A criação do risco, nesse caso, corre por conta do agente (não do paciente). Eutanásia, etimologicamente, significa ?morte boa? (eu = bom/boa; thánatos = morte) ou ?morte sem grandes sofrimentos?. Eutanásia ativa é o mesmo que causar a morte de um paciente terminal, a pedido dele, respeitando-se uma série de condições.

A morte assistida (ou suicídio assistido ou morte medicamente assistida) consiste no auxílio para a morte de uma pessoa, que pratica pessoalmente o ato que conduz à sua morte (ao seu suicídio): toma o veneno, por exemplo. Note-se que na morte assistida a criação do risco é gerada pelo próprio paciente (essa é uma forma de autocolocação em risco, diante de conduta própria). O agente (o terceiro), nesse caso, apenas auxilia, porém, não pratica o ato criador do risco. Nisso é que a morte assistida difere da eutanásia.

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A ortotanásia (também chamada de eutanásia passiva e que, etimologicamente, significa morte no tempo certo) caracteriza-se pela limitação ou suspensão do esforço terapêutico, ou seja, do tratamento ou dos procedimentos que estão prolongando a vida de doentes terminais, sem chance de cura. O desligamento de aparelhos configura, inequivocamente, ortotanásia.

Sedação paliativa é outra coisa: consiste em suavizar, por meio de medicamentos, a dor do paciente. Ela procura evitar (ou suavizar) o sofrimento da pessoa em estado terminal. Mas nesse caso não se antecipa o momento da morte. Nas três situações acima descritas (eutanásia ativa, morte assistida e ortotanásia) há antecipação do momento da morte. Isso não ocorre na mera sedação paliativa.

Quem assistiu ao filme Menina de ouro viu o que é uma eutanásia (ou eutanásia ativa). Tratava-se de paciente em estado terminal, que padecia grande sofrimento (em razão de ter sido golpeada numa luta de box, ficando tetraplégica). Pediu a morte para seu treinador (Clint Eastwood) e foi atendida. No princípio ele desligou o aparelho pelo qual a vítima respirava (até aqui teríamos a ortotanásia) mas, em seguida, ministrou-lhe grande dose de adrenalina, via endovenosa, o que lhe causou uma parada cardiorespiratória (isso é eutanásia ativa). A relação de causa e efeito foi inequívoca: quem criou o risco para a vida da paciente e causou a sua morte foi o seu treinador. Isso caracteriza a eutanásia ativa.

A morte assistida (ajuda para que o próprio paciente realize a sua morte) foi amplamente praticada pelo Doutor Morte (Jack Kevorkian), que foi condenado nos Estados Unidos por ter auxiliado centenas de pessoas a morrer desde 1990. Houve morte assistida no filme Mar adentro, que narra o sofrimento de Ramón Sampedro. Ele não tinha condições físicas de se matar. Pediu ajuda para uma amiga (Rosa), que lhe colocou (ao alcance da boca) o veneno (cianureto). Com esse auxílio, Ramón Sampedro se suicidou.

O que acaba de ser exposto não se confunde com a ortotanásia (eutanásia passiva). Nesta a vítima morre não por efeito (direto) de uma conduta ativa do agente, sim, pela falta de assistência, pela interrupção do tratamento. A ?limitação do esforço terapêutico? (caso da americana Terri Schiavo, que morreu treze dias depois da cessação da terapia), que consiste numa suspensão progressiva do tratamento nos enfermos irrecuperáveis ou com prognóstico certo de morte em curto prazo, configura um exemplo de ortotanásia.

Tudo quanto acaba de ser dito é distinto da ?sedação paliativa?. Nesta não se pode vislumbrar qualquer crime (ou polêmica), porque não há qualquer tipo de antecipação da morte.

c) Permissões legais

A Holanda foi o primeiro país (em 2002) a adotar a prática da eutanásia (eutanásia ativa, que consiste em praticar atos que conduzem à morte do paciente terminal). Mas é preciso ser médico para praticar a eutanásia e, ademais, isso só é possível quando não há mais chance de vida e desejo expresso do paciente (ou da sua família, quando ele está inconsciente e já tinha manifestado antes interesse pela eutanásia). Um outro especialista (médico) deve atestar a irreversibilidade da morte.

Como se vê, várias são as providências cautelares que antecedem a eutanásia. Tudo é feito para que não aconteça uma morte arbitrária. Ao contrário, a morte tem que ser algo positivo, não negativo ou desarrazoado. A colidência se dá, na eutanásia, entre o direito à vida e o direito à morte: o primeiro só pode sucumbir quando o sofrimento que padece o paciente chega a afetar a sua própria dignidade. A morte eutanásica é uma forma de respeito à dignidade humana, por isso que não é desvaliosa, ao contrário, é valiosa (é respeitadora da dignidade humana).

Em 1903, um movimento pró-eutanásia tentou legalizá-la na Alemanha, mas o Parlamento não autorizou; em 1925 na ex-checoslováquia foi autorizada a diminuição ou isenção de pena; em 1993, na Inglaterra, a Justiça autorizou a primeira eutanásia passiva (desligamento de aparelhos); em 1997, o governo de Oregon (EUA) legalizou a eutanásia, mas a Corte Suprema eliminou tal possibilidade; aprovou-se depois lá a ?morte assistida?; em 1996 um Estado autraliano (Northern Territory) aprovou a eutanásia, mas logo depois voltou atrás.

Foi a Holanda, destarte, o primeiro país democrático que aprovou a prática da ?morte boa?. Apesar da nossa resistência à morte, que se deve, segundo Mário Vargas Llosa, à difusão na cultura ocidental da idéia cristã da transcendência e do castigo eterno que ameaça o pecador, o certo é que existe a ?boa morte? (quando o sofrimento afeta profundamente a própria dignidade humana).

O que o regime nazista chamou de eutanásia (Lei para a prevenção das enfermidades hereditárias, 1933) era, na verdade, um holocausto, uma técnica autoritária e aberrante de eliminação de seres humanos.

A Bélgica, depois da Holanda, também já permite a eutanásia ativa. O Estado de Oregon (EUA) autoriza a morte assistida (suicídio assistido: ajuda para que o paciente terminal realize sua própria morte). A ortotanásia (desligamento de aparelhos ou retirada de medicamentos, cessação de auxílio para a distanásia – prolongamento da vida – etc.), por seu turno, já é autorizada na Alemanha, na Suíça e na França. Mas no caso do filme Mar adentro quem prestou auxílio foi uma amiga (não um médico). Por analogia in bonam partem ela poderia ser beneficiada pela legislação penal.

d) ?Status quaestione? da matéria no Brasil

Tanto a eutanásia (ativa) quanto a morte assistida e ainda a ortotanásia deveriam ser rigorosamente disciplinadas (em lei ordinária) no nosso país (cercando-as de todas as providências necessárias para que não se produza uma morte arbitrária).

Todos esses assuntos continuam muito nebulosos no nosso ordenamento jurídico. Grande parte dos doutrinadores (com visão puramente formalista do Direito penal) afirma que estaríamos diante de um crime. Formalmente a outra conclusão não se pode mesmo chegar. Mas esse enfoque puramente formal da questão merece ser totalmente revisado.

No que diz respeito à ortotanásia o Conselho Federal de Medicina, no dia 9 de novembro de 2006, aprovou resolução que permite ao médico suspender tratamentos e procedimentos que prolongam a vida de doentes terminais sem chance de cura. Ocorre que a resolução referida não tem força de lei. Logo, a questão ainda continua gerando muitas controvérsias.

A velha e provecta opinião no sentido de que a eutanásia, a morte assistida assim como a ortotanásia seriam consideradas homicídio ou auxílio ao suicídio é exageradamente formalista. Existem alguns julgados de Tribunais estaduais no sentido de que o homicídio piedoso ou por compaixão (eutanásia) configuraria um homicídio privilegiado, isto é, homicídio com pena diminuída.

Todos esses temas requerem maior atenção do legislador e do público em geral. Temos que disciplinar a eutanásia, a ortotanásia e a morte assistida no Brasil, em lei ordinária, mas isso deve ser feito a partir de uma premissa básica que é a seguinte: jamais é concebível qualquer morte arbitrária, mas desde que não arbitrária, essa morte não configura um resultado desvalioso.

No caso da eutanásia, v.g., a morte só pode ser considerada não abusiva quando cercada de várias cautelas: (a) que o paciente esteja padecendo ?um sofrimento irremediável e insuportável?; (b) que o paciente seja informado do seu estado terminal, leia-se: não há solução médica razoável para o caso e das perspectivas (praticamente nulas) do tratamento; (c) deve haver pedido por escrito, voluntário e lúcido do paciente; (d) o médico deve ouvir a opinião de um colega (ou dois), antes de cumprir o pedido. Também é muito importante a posição da família, sobretudo quando o paciente já perdeu a consciência. De qualquer modo, só se pode falar em eutanásia, nesse caso, se o paciente, previamente, manifestou sua vontade com liberdade. A família só tem o poder de ratificar pedido anterior. Mutatis mutandis, todas essas condições são também válidas para a ortotanásia e para a morte assistida.

Essas rígidas exigências revelam bom senso e razoabilidade e afastam, definitivamente, o argumento de que a permissão da morte poderia ter como conseqüência verdadeiros (e horrendos) ?homicídios?, particularmente contra pobres. Todo o contrário, o pobre, que hoje muitas vezes é vítima de mortes arbitrárias, passaria a ter o mesmo direito dos ricos (que já desfrutam, ainda que na clandestinidade, da chamada ?morte digna?). Fazendo um paralelo com o aborto, que deve sempre ser admitido em casos excepcionais, a mulher pobre resulta muito mais protegida quando ele é regrado claramente pelas leis do Estado racional, não pelos obscurantistas argumentos (de natureza fundamentalista).

Os Códigos Penais europeus, em geral, admitem a eutanásia passiva (desligar aparelhos, que também é chamada de ortotanásia) e punem a eutanásia ativa (código espanhol, art. 143.4; português, art. 134 etc.). No Brasil, neste momento, como já se enfatizou, não há nenhuma disciplina jurídica específica sobre o assunto no Código Penal (quem pratica eutanásia, segundo a jurisprudência, responderia por homicídio, eventualmente privilegiado). Apesar disso, sabe-se que é uma prática (relativamente) comum nas UTIs (Folha de S. Paulo de 20/2/05, p. C1). Na linha das tendências européias posicionou-se a Subcomissão de Reforma do Código Penal em 1994 (Alberto Silva Franco, Luíza Eluf, Paulo Sérgio Pinheiro e Jair Leonardo Lopes). Esse projeto de reforma do CP continua, entretanto, sem movimentação no Congresso Nacional.

A eutanásia ativa (homicídio piedoso ou misericordioso ou por compaixão), que consiste no ato de matar o paciente terminal (injeção letal, por exemplo), segundo a perspectiva da Comissão, seria um homicídio privilegiado (redução de pena de 1/3 a 1/2). Previa-se: pedido da vítima, mal irreversível e incurável e insuportável sofrimento físico e/ou mental. Quanto à eutanásia passiva (ortotanásia), que se dá quando se interrompe uma terapia (desligamento de aparelhos, por exemplo), contemplava-se uma causa de exclusão da ilicitude (inexistência de crime), desde que: o médico fosse o autor da medida extrema, hipótese de morte iminente (atestada por dois médicos), pedido com consciência, autorização da família e autorização judicial. Se de um lado não há como negar o avanço da proposta, de outro, não se pode deixar de criticar o seu excesso de cuidado: a autorização judicial, por exemplo, parece ser um exagero. De outro lado, a família só pode manifestar sua vontade quando o paciente está inconsciente. O direito à ?morte digna? deve sempre estar cercado de cautelas, mas não se pode sujeitar a exigências excessivas.

e) Nossa posição: exclusão da tipicidade material

Na nossa opinião, mesmo de lege data (tendo em vista o ordenamento jurídico vigente hoje), desde que esgotados todos os recursos terapêuticos possíveis e desde que cercada a morte de certas condições razoáveis, a eutanásia, a morte assistida e a ortotanásia não podem ser enfocadas como um fato materialmente típico porque não constitui um ato desvalioso, ou seja, contra a dignidade humana senão, ao contrário, em favor dela (no sentido de que a ortotanásia é juridicamente irreprovável cf. Luís Roberto Barroso, Folha de S. Paulo de 4/12/06, p. C4).

Pensar de modo diferente levaria ao seguinte paradoxo: quem não padece nenhum sofrimento e tenta dar cabo a sua vida (tentativa de suicídio) não é penalmente punível; seria passível de sanção o ato de pôr em prática, não arbitrariamente, o pedido de morte de quem, em condições terminais, já não suporta tanto sofrimento físico e/ou mental? Se o agente tentar o suicídio e não o consumar, por nada responde. Isso significa que o Código Penal já respeita a vontade da vítima. Com muito mais razão essa vontade deve ser juridicamente aprovada quando cercada de uma série de outras condições, que tornam a morte razoável.

A essa conclusão se chega quando se tem presente a verdadeira e atual extensão do conceito de tipo penal (dado pela teoria constitucionalista do delito, que subscrevemos com base na doutrina de Roxin, Frisch e Zaffaroni), que abrange (a) a dimensão formal-objetiva (conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra da lei); (b) a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e (c) a dimensão subjetiva (nos crimes dolosos).

A ?morte digna?, que respeita a razoabilidade (quando atendida uma série enorme de condições), elimina a dimensão material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte, nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em resultado jurídico desvalioso nessa situação.

A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto) entre (de um lado) o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante que possa ofendê-lo) e (de outro) o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal), fundado em valores constitucionais básicos como o da dignidade humana.

Na ?morte digna? (decorrente de eutanásia ou ato assistido ou ortotanásia), quando cercada de uma série de cautelas, parece não haver dúvida que o resultado jurídico (lesão contra o bem jurídico vida) não é um resultado desaprovado juridicamente.

Todas as normas e princípios constitucionais pertinentes (artigos 1.º, IV – dignidade da pessoa humana -; 5.º: liberdade e autonomia da vontade etc.) conduzem à conclusão de que não se trata de uma morte (ou antecipação dela) desarrazoada (ou abusiva ou arbitrária).

Não há dúvida que o art. 5.º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida ?arbitrariamente?. O que se deve conter é o arbítrio, o abuso, o ato irrazoável. Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em resultado jurídico desvalioso (ou intolerável). Ao contrário, trata-se de resultado juridicamente tolerável, na medida em que temos, de um lado, uma vida inviável, de outro, um conteúdo nada desprezível de sofrimento (do paciente terminal, da família etc.).

Pode-se afirmar muita coisa em relação à denominada ?morte digna?, menos que seja um caso de morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do paciente terminal (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada), a pedido dele (e com anuência da família). Aliás, sublinhe-se que quando o paciente não manifesta seu desejo, nada pode ser feito. Ademais, quando se antecipa a morte, isso se faz em respeito a outros interesses sumamente relevantes (dignidade, liberdade, cessação de sofrimento etc.). Não se trata, portanto, de uma morte arbitrária. O fato (quando observadas todas as condições de razoabilidade) é atípico (do ponto de vista material) justamente porque o resultado jurídico não é desarrazoado, ou seja, a lesão não é desarrazoada.

Há muitos que afirmam que a vida e a morte pertencem a Deus (isso decorre da relevante liberdade constitucional de crença). Mas no plano terreno (e jurídico) o que temos que considerar é a Constituição Federal, os tratados internacionais e o Direito infraconstitucional. Na esfera constitucional o fundamental nos parece respeitar os princípios da dignidade humana e da liberdade (que significa direito à autodeterminação). Eles não conflitam com o direito à eutanásia ou ortotanásia ou morte assistida, ao contrário, constituem a base da chamada ?morte digna?.

Por seu turno, proclama o Direito Internacional vigente no Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. 6.º, e Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose -, art. 4.º), que conta com status supralegal, nos termos do voto do Min. Gilmar Mendes (STF, RE 466.343-SP, rel. Min. Cezar Peluso), o seguinte: o direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deve ser protegido por lei e ninguém pode ser arbitrariamente privado dele.

Enfatizando-se: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Em conseqüência, havendo justo motivo ou razões fundadas, não há como deixar de afastar a tipicidade material do fato (por se tratar de resultado jurídico não desvalioso). Essa conclusão nos parece válida seja para a ortotanásia, seja para a eutanásia, seja para a morte assistida, seja, enfim, para o aborto anencefálico. Em todas essas situações, desde que presentes algumas sérias, razoáveis e comprovadas condições, não se dá uma morte arbitrária ou abusiva ou homicida (isto é, criminosa).

Lógico, então, diante de tudo quanto foi exposto, que a eutanásia, a morte assistida e a ortotanásia nunca podem ser concebidas para (apenas) eliminar um paciente do hospital ou para se conseguir uma vaga na UTI ou mesmo para se diminuir custos para rede hospitalar etc. Esses motivos transformariam o discurso da ?morte digna? em uma prática de morte aberrante e reprovável (ou seja: desarrazoada). Havendo, entretanto, justo motivo assim como uma série de condições (grave sofrimento, morte irreversível, pedido consciente, anuência da família quando o caso etc.), não há como deixar de admiti-la como juridicamente possível (incensurável). Mesmo porque, nada existe contra a morte digna do ponto de vista ético (ou mesmo jurídico).

Já é hora de passar a limpo o emaranhado de paradoxos, obscuridades e preconceitos que estão circundando a questão da ?morte digna? (que compreende a eutanásia, a morte assistida e a ortotanásia). Essa delicada questão, em última análise, envolve a própria liberdade humana, tão restringida em vários momentos históricos, sobretudo quando há eclipse da autodeterminação do ser humano.

Com urgência nosso Congresso Nacional deve se debruçar sobre o assunto para que não paire dúvida sobre ele. Os médicos não podem continuar com a ?espada da (in) Justiça? sobre a cabeça. Os pacientes terminais devem contar com o direito de decidir sobre a hora e local da sua morte (tal como decidiram Mário Covas, o Papa João Paulo II etc.). Necessitamos de uma legislação nacional clara e objetiva sobre a matéria. Mesmo porque, a grande maioria da população brasileira está de acordo com isso (cf. nesse sentido enquete feita pelo portal do Estadão).

De qualquer modo, mesmo sem uma legislação específica, valendo-nos da Constituição Federal vigente, do Direito internacional invocado assim como da atual teoria constitucionalista do delito (que o enfoca como uma ofensa desvaliosa ao bem jurídico), não há como reconhecer tipicidade material na ?morte digna? (quando for fruto de um ato dotado de uma série enorme de condições razoáveis).

No mundo atual não faz sentido temas tão relevantes como os aqui tratados ficarem à margem do Direito. Mesmo porque, com ou sem ele, o certo é que uma verdadeira revolução silenciosa já está em andamento. É justamente o que concluiu John Schwartz, em artigo recente publicado na revista The New York Times (artigo reproduzido em suplemento do El País – Espanha – no dia 31.03.05, p. 1): ?Com ou sem leis, muitos americanos estão assumindo um papel ativo em sua própria morte, alguns com a ajuda de seus médicos e outros por meio de ações por sua conta?. Essa, na verdade, é uma tendência mundial. Pela importância do assunto, não deveríamos praticar a política do avestruz (metendo a cabeça na terra, para nada ver).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-Geral do IPAN -Instituto Panamericano de Política Criminal, Consultor e Parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais) www.lfg.com.br.