Estatuto do Idoso e a Lei 9.099/95 (II)

Com raras exceções no aspecto penal e processual penal, nosso legislador faz análise sistemática das normas antes de aprová-las, já que a não sistematização pode gerar verdadeiras aberrações.

Dentre elas podemos citar a pena fixada para o delito de lesão corporal culposa nos delitos de trânsito (art. 303 do Código de Trânsito, com pena corporal de 6 meses a 2 anos), cujo apenamento é superior à lesão corporal dolosa do Código Penal (art. 129, com pena de 3 meses a 1 ano). Esta omissão do legislador criou a absurda situação para a defesa (técnica ou pessoal do acusado), que para ter a pena diminuída é aconselhável que confesse que a lesão praticada contra a vítima foi intencional, e não apenas por culpa.

Também nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor a pena para os delitos praticados contra menor de 14 anos é mais branda (arts. 213 e 214 do CP, pena de 4 a 10 anos) em relação àqueles em que a vítima tem idade igual ou superior a 14 anos (pena de 6 a 10 anos). Esta situação deixa bem clara a negligência do nosso legislador ao formatar as leis penais, tendo em vista que a Lei dos Crimes Hediondos fixou a pena para as vítimas com idade igual ou superir a 14 anos (Lei 8.072/90, art. 6), enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente fixou a pena para os casos em que a vítima é menor de 14 anos (Lei 8.069/90), tendo o primeiro diploma legal sido publicado em 25.07.90 e o segundo em 13.07.90. Isso demonstra que mesmo tendo os projetos de leis que originaram os diplomas em comento tramitado simultaneamente, não houve qualquer preocupação em sistematizar as duas normas. Diante deste quadro, imagine-se o que esperar quando os projetos de lei tramitam em épocas diversas.

No Estatuto ora em estudo o legislador não fez diferente. No art. 99, 1, regulando crime de lesão corporal de natureza grave, fixou pena privativa de liberdade de 1 a 4 anos. Ocorre que o art. 129 do Código Penal atribuiu para esta modalidade de crime, quando a vítima for qualquer indivíduo, pena de 1 a 5 anos. Portanto, quando a vítima tiver idade superior a sessenta anos a pena é menor do que quando sua idade for inferior. Considerando a especialidade da norma e o bem jurídico que se buscou tutelar, esta contradição somente pode ser considerada como fruto de negligência do legislador, e não de sua vontade.

Todas estas questões devem ser consideradas no momento de se aplicar a hermenêutica jurídica na interpretação do dispositivo legal ora em estudo.

Esta mesma contradição, além da efetiva falta de clareza, é detectada também no artigo 94 do Estatuto. Vejamos.

Diz o citado dispositivo legal que aos crimes previstos no Estatuto, cujo apenamento privativo de liberdade não ultrapasse a quatro anos, incide o procedimento previsto na Lei 9.099/95.

Como já vimos, esta lei prevê dois procedimentos, sendo um para os delitos considerados de pequeno potencial ofensivo e o outro para os casos de suspensão do processo. Apesar disso, o dispositivo em estudo não indica a qual destes procedimentos esta a se referir.

Este artigo prevê que para estes casos, no que couber, aplica-se subsidiariamente o Código de Processo Penal. Se fizermos apenas interpretação literal deste dispositivo, não podemos deixar de admitir que o procedimento para persecução criminal do Código de Processo Penal somente aplica-se para os delitos cujo apenamento máximo não ultrapasse a quatro anos. E qual então seria o procedimento a ser adotado para os delitos com pena superior a quatro anos, se este artigo limitou a incidência do Código de Processo Penal para os crimes com apenamento privativo de liberdade somente até quatro anos?

Assim, fica claro que no caso em estudo o legislador não quis dizer aquilo que expressamente consignou.

Por todas estas questões, além de outras, não vejo como possa ser interpretado que o legislador pretendeu, ao dizer que para os crimes com apenamento máximo em quatro anos aplica-se o procedimento da Lei 9.099/95, estaria referindo-se aos delitos de menor potencial ofensivo, até porque tanto a Lei 9.099/95 quanto a Lei 10.259/01, ao tratarem deste regramento, assim o fizeram de forma expressa e inequívoca.

Por outro lado, caso a interpretação seja diversa da nossa posição, todos os delitos de menor potencial lesivo estarão configurados quando o apenamento máximo não ultrapassar a quatro anos. Esta conclusão extrai-se pela forma como esta matéria foi interpretada ao ser analisado o patamar máximo previsto na Lei 10.259/01, como atrás vimos.

Veja-se que, no caso de concluir-se que os delitos de pequeno pontecial lesivo incidem aos crimes do Estatuto do Idoso, conforme patamar de pena lançada no art. 94, é muito difícil defender que esta interpretação não se estende para todos os demais delitos, especialmente em razão do bem jurídico tutelado.

Ao nosso ver, nem mesmo o argumento da especialidade da norma é suficiente para negar esta extensão, porque, se de um lado há finalidade da norma, de outro temos a sua objetividade jurídica, a qual inegavelmente se sobrepõe às demais. Isto é, o idoso quando vítima merece maior proteção que outros indivíduos, e sem sombra de dúvidas foi isso que o legislador pretendeu ao aprovar o Estatuto em comento.

Porquanto, não seria racional sancionar mais brandamente bem jurídico que merece maior proteção, ao ponto do legislador produzir um Estatuto unicamente com esta finalidade, em comparação com outros que merecem e tiveram tratamento normal. Por isso, aplicando-se o princípio de quem pode o mais pode o menos, se o bem jurídico com maior proteção dada pela lei tem a pena mitigada, dita mitigação deve atingir também aqueles com proteção legal sem maior destaque.

Por isso cremos que pela especificidade do Estatuto do Idoso a sua objetividade jurídica é direcionada à proteção do maior de sessenta anos. A previsão de pena máxima de quatro anos para aplicação do procedimento previsto na Lei 9.099/95 está a se referir não aos crimes de pequeno potencial lesivo, mas sim aqueles possíveis de suspensão do processo nos termos do art. 89 da citada lei.

Vale aqui relembrar o que dissemos anteriormente quanto à prisão em flagrante, onde para os crimes de menor potencial lesivo não será lavrado auto prisional, mas tão somente o autor assume o compromisso de comparecer a todos os atos do processo e é colocado em liberdade.

A proteção do idoso pelo Estatuto em estudo é dada tanto fora quanto dentro do lugar onde habite, não sendo raro que em muitos delitos praticados contra idosos os autores são parentes ou pessoas que, ou lhe cuidam, ou com ele residem.

Isso implica em dizer que caso aceitemos que delitos com pena corporal até quatro anos, o autor de infração praticada contra maior de sessenta anos, mesmo preso em flagrante, será colocado em liberdade. Neste caso, na maioria das vezes retornará para próximo da vítima, especialmente quando o delito for perpetrado dentro dos ambientes em que vivem.

Por certo não foi esta a intenção do legislador quando buscou aprovar o Estatuto em comento, tendo como objetivo primeiro a proteção do idoso, e na hipótese atrás vista, certamente coloca em risco a integridade física e moral da vítima.

Diante desta realidade, penso que a melhor interpretação do dispositivo em estudo seja no sentido de que mesmo pena mínima superior a um ano (o art. 89 limita somente a pena mínima em um ano, sem fazer qualquer referência à máxima), no caso da pena máxima não ultrapassar a quatro anos (v.g., arts. 106 e 108 do Estatuto do Idoso – pena de 2 a 4 anos), o acusado tem direito à suspensão do processo.

Como conclusão temos que o Estatuto do Idoso não conferiu qualquer alteração aos chamados crimes de pequeno potencial lesivo, seja em relação aos delitos nele previstos, seja quando aos demais, permanecendo como requisito objetivo da pena máxima o patamar de dois anos.

Por outro lado, penso que o patamar de quatro anos de pena máxima fixada no art. 94 está relacionado com a suspensão do processo prevista no art. 89 da Lei 9.099/95, não incidindo esta regra quando as sanções privativas de liberdade superarem este quantum, ainda que a pena mínima não seja superior a um ano.

Também para os delitos do Código Penal e outras legislações, quando a pena mínima não ultrapassar a um ano e a máxima não ir além de quatro, para todos os crimes incide a regra do Estatuto do Idoso, face o princípio constitucional da isonomia considerando o bem jurídico tutelado.

Portanto, o art. 89 da Lei 9.099/95 foi derrogado pelo Estatuto do Idoso, não havendo mais patamar mínimo de pena privativa de liberdade (1 ano), mas sim máximo (4 anos), respeitadas as hipóteses dos delitos cometidos antes da entrada em vigor do Estatuto em estudo e a norma anterior mais benéfica ao acusado segundo o caso em concreto.

Jorge Vicente Silva

é professor, advogado, pós-graduado em Pedagogia a nível superior, especialista em Direito Processual Penal pela PUCPR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, Tóxicos, análise da nova lei, Manual da Sentença Penal, e no prelo, “Estatuto do Idoso – Penal e Processual Penal”.E-mail: “jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br”, Site “jorgevicentesilva.com.br”

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