Estatuto do Idoso e a Lei 9.099/95 (I)

O Estatuto do Idoso trouxe muitas alterações benéficas às pessoas com idade superior a sessenta anos, criando inúmeros tipos penais para resguardar os direitos e a própria integridade física e psíquica de tais pessoas.

Dita norma em sua integralidade protege a pessoa de idade, não restando qualquer dúvida de que o bem jurídico tutelado por esta norma, com inegável caráter de especialidade, é o cidadão com idade superior a sessenta anos.

No aspecto penal, além da criação de tipos novos, também para aqueles já existentes, a nova lei prevê aplicação de agravantes ou causas de aumento de pena quando a vítima é pessoa com idade superior a sessenta anos.

Já no âmbito do direito processual penal ficou assentada a incidência da Lei 9.099/95, do Código Penal e Código de Processo Penal, conforme estabelece o artigo 94 do citado Estatuto. Verbis:

“Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099, de 26/09/95, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.”

Especialmente no que se refere ao procedimento da Lei 9.099/95, a nova lei gerou um vácuo, porque esta norma prevê duas modalidades de procedimentos. Um para os chamados crimes de menor potencial lesivo (arts. 61/76) e outro para os delitos cujo apenamento mínimo não ultrapasse a um ano de pena privativa de liberdade (art. 89).

Quanto aos delitos de bagatela, que são previstos pelo art. 61 da Lei 9.099/95, cuja sanção máxima privativa de liberdade não ultrapassasse a um ano, foi elevado para dois anos, face a previsão contida na Lei 10.259/01, a qual criou o Juizado Especial da Justiça Federal. A derrogação do citado art. 61, no que tange ao requisito objetivo do quantum máximo da pena para configurar crime de menor potencial lesivo atualmente é matéria pacífica, inclusive no E. STJ. Verbis:

“A Lei 10.259/01, ao definir os delitos de menor potencial ofensivo, demarcando-os em função da pena, ampliou o âmbito da aplicação do conceito para os casos em que a pena máxima não ultrapasse 2 (dois) anos, ou multa, e alcança o disposto no artigo 61, da Lei 9.099/95. (STJ, Rel. Min. Paulo Medina, HC 14.394/SP, DJU de 15.03.2004, p. 300).

Preenchido o requisito objetivo do máximo da pena, resta configurado o crime de menor potencial ofensivo, com procedimento próprio, inclusive para a fase de início da persecução criminal nos casos do acusado ser preso em flagrante.

Prevê o art. 69, caput, que a autoridade policial, ao tomar conhecimento da ocorrência da infração penal, lavrará termo circunstanciado, estando expresso no parágrafo único do citado dispositivo que, após este procedimento, e quando o autor da infração assumir compromisso de comparecer a juízo, “não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança.”

Para tais delitos a lei autoriza transação onde, ao invés de instrução do processo, há uma composição que pode resolver-se em pecúnia ou outro compromisso.

Já para os delitos cujo apenamento mínimo previsto para o tipo não ultrapasse a um ano de pena privativa de liberdade a lei confere possibilidade de suspensão do processo pelo período de dois a quatro anos, ao invés do seguimento da persecução criminal.

Nestas infrações a instauração do inquérito policial, inclusive quando iniciado pela lavratura do auto de prisão em flagrante, a matéria é regulada pelo Código de Processo Penal, o mesmo ocorrendo em relação à soltura do autuado quando preso em estado de flagrante.

Portanto, diversamente dos delitos de menor potencial lesivo, os quais não admitem prisão em flagrante, ainda que o autor do crime seja reincidente, nos crimes em que o art. 89 da Lei 9.099/95 autoriza a suspensão do processo, as questões relacionadas com prisão e liberdade provisória são reguladas pelo Código de Processo Penal, sem qualquer benefício.

Cuida-se, portanto, de institutos completamente diferentes, cujos procedimentos também não possuem qualquer semelhança.

Pelo termo do citado art. 94 do Estatuto do Idoso, verifica-se que dito dispositivo legal diz apenas que o procedimento será aquele adotado pela Lei 9.099/95, sem indicar que seja aquele para os crimes de bagatela ou para suspensão do processo.

Este fato gerou perplexidade ao interprete, pois através de interpretação literal do dispositivo em estudo não é possível saber se o legislador pretendeu estender para quatro anos a pena máxima para os crimes de pequeno potencial lesivo, ou se este marco de quatro anos está relacionado com as hipóteses de suspensão do processo.

Até o momento, poucos escreveram sobre esta matéria, dentre eles podemos citar o Professor Luiz Flávio Gomes, o qual rechaça a possibilidade deste dispositivo legal estar se referindo aos crimes de pequeno potencial lesivo, cujo fundamento principal centra-se no fato de que dito artigo fala em procedimento, não havendo por isso readequação aos delitos de pequeno potencial lesivo considerando a pena privativa de liberdade prevista para o tipo.

Ao nosso ver, não houve ampliação para quatro anos do quantum de pena para configurar os crimes de bagatela. Neste particular aceitamos os fundamentos postos pelo mestre Luiz Flávio Gomes. Entretanto, preferimos esta conclusão em razão da objetividade jurídica do Estatuto do Idoso.

Veja-se que toda estrutura do Estatuto do Idoso, como não podia deixar de ser, está centrada unicamente na proteção das pessoas com idade superior a sessenta anos.

Portanto, não é possível que no aspecto penal o legislador, mesmo após criar novos tipos, amainasse no aspecto de repreensão ou prevenção de crimes praticados contra idosos. Interpretar o contrário seria abandonar a finalidade da norma.

Para demonstrar a inviabilidade de interpretação da extensão para quatro anos aos crimes de pequeno potencial lesivo, analisemos alguns exemplos. O crime de lesão corporal de natureza grave praticado contra idoso seria delito de bagatela (art. 99, pena de 1 a 4 anos), enquanto este mesmo crime, quando praticado contra outros indivíduos, não entraria dentre aqueles considerados de bagatela. O mesmo se diga em relação à apropriação indébita (art. 102 do Estatuto e 168 do CP, ambos prevendo pena de 1 a 4 anos), na qual, quando a vítima for idosa, o crime seria de bagatela e crime comum em relação às demais vítimas. Portanto, pensar diferente é inverter a finalidade específica da norma.

Também não compactuamos com a idéia de que, para não haver estas distorções, todos os delitos com apenamento máximo não superior a quatro anos agora estariam acobertados pelo benefício de serem considerados de bagatela.

Espanto-me somente em pensar na possibilidade desta interpretação, porque estaríamos não bagatelando determinados delitos, mas sim banalizando o direito penal, retirando o caráter de prevenção e repreensão. Para tanto, basta observar que inúmeros crimes, v.g., furto simples, receptação, apropriação indébita, etc., seriam considerados delitos de bagatela.

Qual então seria a interpretação a ser dada ao artigo 94 em estudo, no aspecto de fixar quatro anos para aplicação do procedimento previsto na Lei 9.099/95?

Antes de responder esta indagação é importante observar diversas questões relacionadas com nossas leis penais e nosso legislador. No próximo domingo publicaremos a parte II do presente artigo.

Jorge Vicente Silva

é professor, advogado, pós-graduado em Pedagogia a nível superior, especialista em Direito Processual Penal pela PUCPR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, Tóxicos, análise da nova lei, Manual da Sentença Penal, e no prelo, “Estatuto do Idoso – Penal e Processual Penal”.E-mail: “jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br”Site “jorgevicentesilva.com.br”

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