Esta celeuma em torno de Judas

A celeuma em torno de Judas atingiu seu ápice e ainda não vi ninguém relacionar esta ?nova? visão do Cristianismo primitivo, provida pela descoberta e restauração do valioso documento copta encontrado no Egito, com as estórias (eu sei, esta palavra mudou, mas eu sou velho) metabíblicas de C. S. Lewis.

Nas Crônicas de Nárnia, o velho companheiro intelectual de J.R.R. Tolkien já desbravava significâncias teológicas próprias. Desprezava o uso de imagens pela Igreja Católica, mas defende o uso alegórico do conteúdo dos Evangelhos como parte da formação do caráter do cristão.

Em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, o menino Edmond (Judas) trai a confiança dos seguidores de Aslam (Cristo) ao entregar sua localização à Feiticeira Branca (Satã). Esta comparece ao acampamento de Aslam e exige que o menino traidor seja julgado e executado. Aslam evoca um trato ancestral que possibilita a troca de prisioneiros, entrega-se aos inimigos e termina sendo assassinado numa grande mesa sacrifical – de quebra, salvando o menino. Ao resssuscitar na manhã seguinte, entra em combate na undécima hora para encerrar o conflito. Edmond está mal, à beira da morte. Aslam ressuscitado sopra-lhe a vida e o recoloca em pé. O príncipe Pedro é empossado um de quatro reis (o grifo é meu), Judas, opa, Edmond um dos quatro. Com duas mulheres.

Há os que dizem que Lewis é sexista por não colocar as meninas em batalhas mais sangrentas. Não creio. Elas estão lá, na ?agonia do Jardim das Oliveiras?, na cena de ressurreição, quando não reconhecem o Senhor. E são proclamadas, ambas, rainhas.

O que Lewis proclama na série, mas especialmente neste livro, é um cristianismo que expõe sua cara e propõe um papel para Judas no plano divino. E pela redenção de Edmond, podemos apenas supor quão forte seria o Cristianismo primitivo se a pena de Judas o permitisse seguir trabalhando.

O Judas que emerge do pergaminho é um escolhido, por teste de fé, para cumprir a mais negra das missões: atraiçoar seu mestre. E se mostra apto ao sacrifício.

Ao se negar a percorrer os caminhos de Judas após a traição, o evangelho nos propõe a mesma questão: o que Judas faria? Se tivesse sobrevivido? Se sua história tivesse sobrevivido.

Ao colocarmos Judas no papel de um enviado de Jesus para detonar o processo de sua prisão, todas as teorias poderiam ter sido inventadas, mas uma nos parece mais plausível: a de que em tudo, no âmbito do sacrifício de Cristo, o Homem prevaleceu. E a Bíblia tradicional é clara: o Homem prevaleceu sobre todas as formas de mal, através do sacrifício Divino de Jesus Cristo. Mas se uma só alma, que convivera por tantos anos com Ele, tivesse que ser sacrificada para saciar o Diabo, será que o Deus em Jesus, não só o Homem, permitiriam impunemente?

Ao realizar uma última estripulia típica de seu humor juvenil, Jesus retira o Opositor de cena, ao tornar sua Morte na Cruz fruto de dois livres-arbítrios humanos. Judas faria o que fez com, sem ou apesar dos trinta dinheiros. Estava seguindo ordens. De Jesus. Do Filho de Deus. E assim sela-se um novo pacto entre Deus e o homem através, unicamente, das decisões tomadas por ambos.

No ato do Batismo, pais e padrinhos renunciam ao Diabo em nome do bebê, retirando o ?pecado original?, tornando-nos protegidos contra ele. Por que não dizermos, então, que ao sermos batizados, temos despertada dentro de nós a centelha divina dos gnósticos? Pois o velho homem morreu junto com Cristo na Cruz, e um novo homem nasceu. Como poderia ter Jesus refeito o pacto com Deus se não enterrasse ali o conceito de pecado original?

São os representantes da mais antiga das Igrejas os mais preocupados com a repercussão do ressurgimento dessas antigas heresias, uma vez que as denominações protestantes em sua maioria sempre incentivaram a pluralidade de entendimentos da figura de Jesus através da leitura dos Evangelhos Canônicos. A ponto de levar o novo Papa a proferir as palavras mais duras e ofensivas ditas por um religioso nos últimos anos. Acostumados com o estilo brando de João Paulo II, fiéis e opositores da Igreja uniram-se em perplexidade.

Eu, de minha parte, fico com Lewis: o Paraíso parece ser bastante aberto a novos contratos, aqueles assinados na hora da morte, desde que feitos por amor a Deus. Sou católico de formação, mas que a justificativa pela Graça de Lutero encaixa-se como uma luva a essa nova descoberta é evidente. Por isso a reação imediata de Roma.

Agora, provoco: seria mera coincidência ou Lewis e Tolkien teriam acesso a antigos e pouco conhecidos documentos para terem ousado recriar a história da cristandade em livros como ?As Crônicas de Nárnia? e o ?Silmarillion?? Novas descobertas poderão ainda vir à luz?

Renato van Wilpe Bach é médico e escritor

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