Erro ou sinceridade?

O Brasil, com uma das distribuições de renda mais desequilibradas do mundo, gasta mais em programas sociais do que a maioria dos países em desenvolvimento. Ainda assim, esse dinheiro não chega aos mais pobres. A crítica vem de fora, e coincide com o Fome Zero II, programa recentemente lançado com honras e pompas sob o nome de Bolsa Família pelo presidente Lula, convencido de agora estar no rumo certo. Publicou-a em editorial o jornal britânico Financial Times, aduzindo que o principal programa social do governo “frustrou expectativas”.

O jornal britânico não disse nenhuma novidade. O próprio Lula, ao admitir que acha agora estar no rumo certo, reconhece que, antes, no mínimo entrara por picada errada. Não foi por outra que até Duda Mendonça, o marqueteiro do rei, sugeriu o delicado termo “evolução” para explicar a mudança – admissão de um fracasso que até os estrangeiros percebem. Ao argumento de que era preciso esperar a adesão dos governadores e prefeitos (que, enfim, não veio) também a idéia de evolução foi substituída.

Mas enquanto a nação torce para que o Fome Zero II dê certo, já de partida outra trapalhada empana o brilho da estrela petista em baixa nas preferências populares. O ministro Guido Mantega, do Planejamento, falou demais (ou disse a verdade?) ao colocar dúvidas sobre a existência de recursos para financiar todas as metas do Bolsa Família. Na verdade, Mantega disse que os recursos estavam “ameaçados”.

Não podia ser diferente: conta a crônica que Lula chamou o companheiro, fechou a porta, e deu-lhe uma tremenda lição de moral. Como podia ele, por mais ingênuo que fosse, dizer aquilo exatamente no dia em que o presidente, num esforço hercúleo de recomeço, dourava a pílula para não admitir que errou, justamente no seu principal programa? “O presidente da República não viria a público lançar um programa de unificação se os recursos não estivessem assegurados”, remendou Luiz Dulci, outro ministro, já no dia seguinte. “Quem comanda esse governo – era desnecessário Dulci dizer – é o presidente.” Na parte que lhe compete, pelo menos.

Instado a desfazer o mal-estar que provocara, Mantega seguiu a ordem presidencial. “O projeto de transferência de renda, ou Bolsa Família, será viabilizado. Sobre ele não pairam dúvidas”, assegurou o ministro do Planejamento, dia seguinte, para concluir: “Ele tem a chancela de prioritário”. Não disse, entretanto, que haja dinheiro já disponível para financiar todas as suas fases. E Mantega não disse porque provavelmente não exista mesmo. Portanto, mentindo estariam os outros. Teria ele falado apenas a verdade, nada mais que a verdade…

Sabe-se que Mantega tem lá sua ponta de razão. Deputados e senadores estão protestando contra a retirada (do Orçamento da União, ainda não votado pelo Congresso) de verbas da saúde para ações de combate à fome e saneamento básico. Se os parlamentares fincarem pé na questão, poderão faltar nada menos que R$ 3,5 bilhões para as ações sociais unificadas, ou seja, para o Fome Zero II, orçado em R$ 5,3 bilhões para o ano que vem. Um dos deputados a questionar a ilegalidade do projeto enviado pelo Planalto ao Congresso é Roberto Gouveia, um petista de São Paulo. Guerra também em casa, portanto. Ele foi bater às portas do Ministério Público Federal e promete “tensionar” para que o “meu governo” entenda que está errado… afinal, “a lei manda que a saúde tenha verba própria”.

Assim sendo, prudentemente, o ministro Mantega pode ter razão quando diz imaginar “que os parlamentares não serão contrários à unificação dos programas sociais” – um santo muito grande e sem cobertor adequado. Mas, e se não quiserem tirar a coberta da saúde – outro santo que já recorreu em vão ao milagre da CPMF?

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