Eles presos, nós maniatados

Há trinta anos o Brasil, assim como outras tantas nações latino-americanas, vivenciava a entrada em vigor da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. São José da Costa Rica, diante da geografia humana que se apresentava e do arrefecimento da Guerra Fria, parecia-nos a um só tempo tão perto, e ao mesmo tempo tão longe.

A redenção pública de uma ditadura moribunda, prestes a anistiar seus maiores detratores, e de uma diplomacia de boa vizinhança com os interesses norte-americanos, fazia do Estado Brasileiro um imenso responsável pela proteção dos direitos individuais fundamentais.

Um estado hipertrofiado, herdeiro do desenvolvimentismo e da substituição de importações, imensamente vasto, desconcentrado e “descentralizado”, cujos braços se estendiam desvairadamente sobre a vida privada, mas incapaz de ao menos respeitar os direitos dos cidadãos brasileiros.

Em sendo um nítido paradoxo, sucumbia diante dos gastos públicos, da crise macroeconômica e da penúria humana. Era a um só tempo tão grande e ao mesmo tempo tão pequeno.

Assim, entre contradições, o jusdiscurso brasileiro sobre os direitos humanos se colocava originalmente no ambiente acadêmico e técnico, e fazia políticos, juristas, professores e justecnocratas se debruçarem em busca da delimitação sobre o que seria um “homem brasileiro”, quais seriam os seus direitos mínimos e quais os papéis do Estado em garanti-los.

Dez anos depois, a Constituição da Nova República surgia acreditando, entre seus devaneios, numa forma verdadeira e profunda de incorporar a carta principiológica de São José da Costa Rica. E nela não faltaram incisos sobre os direitos individuais e sociais para o brasileiro.

Com a carta, pensava-se no valor da liberdade, da integridade física, da nacionalidade, da propriedade privada, do acesso às fontes da cultura e da ciência, das proteções de âmbito criminal (anterioridade, retroatividade, presunção de inocência, juízo natural…), etc.

Um discurso bonito, comovente, capaz de extravasar gritos no plenário daquele congresso de 1988 (o que certamente tem seu valor). Porém, também um discurso notoriamente impraticável, sem alicerces quaisquer, edificado num terreno alagadiço e lodoso, cujos valores humanos ainda precisavam ser verdadeiramente repensados dentro da sociedade, e, sobretudo, dentro do domínio jusacadêmico.

Era uma construção feita do dia para a noite, forjada na demagogia de um debate político que se entendia como apto a dar à nação a solução dos seus problemas através de um punhado de cláusulas pétreas, como se o reconhecimento das dificuldades do povo brasileiro pudesse ter palco naquele plenário.

O espírito do “crescer para depois repartir”, ainda permeava o imaginário de grande parte da classe média brasileira, e, infelizmente, permeia até hoje. O anacronismo da esquerda e a inocência perversa da direita se viam incapazes de dialogar sobre os direitos humanos.

Alguns, preocupados com a inserção internacional do país numa matriz neoliberal, outros, institucionalistas, ainda forneciam as bases de um Estado forte, acreditando numa juscartomancia de bons presságios, porém, sem qualquer resultado.

Com isso, o direito dos brasileiros continuou a ser construído por leis específicas, muito bem intencionadas e válidas, porém sem respaldo efetivo do Estado. Acabaram se tornando, por infelicidade, em belos artigos aglomerados em dispositivos, mas que ainda estão longe de serem vivenciados.

Aliás, lá se vão quase vinte anos de Constituição Federal e embora algo já se tenha feito, quanto ainda falta para que os dispositivos normativos que garantem o indivíduo (o mínimo!) sejam reconhecidos como razoavelmente cumpridos?

E não se diga que foram apenas vinte anos e que se leva muito mais tempo para se construir um país: quantas crianças ainda morrerão de desnutrição, quantos ainda apodrecerão em cárceres imundos e superlotados e quantos passarão a vida sem saber ler e escrever nos próximos vinte anos ou até que se “construa o país”?

Por mais óbvio que esse discurso possa parecer, o que realmente choca num país com tantas virtudes, é sua incapacidade de concretizá-los. Isso também parece óbvio, mas não o poderia ser.

A pior razão decorre não apenas de uma sociedade com anseios acomodados, ainda que perigosamente instáveis, mas de uma classe jurídica que realmente não sabe como sustentar o seu discurso. Somos, infelizmente, incapazes do ponto de vista teórico de vivenciar esses direitos e deveres constitucionais como valores próprios.

No mundo prático, é corrente se perceber a ataraxia de promotores, juízes, delegados e professores ao desrespeito aos direitos humanos. Embora inúmeros profissionais possam ser excluídos, porque realmente se voltam à concretização da carta constitucional, outros tantos ainda vivem sem saber ao certo qual o seu verdadeiro papel institucional no país.

Curiosamente, acomodam-se nas suas próprias garantias constitucionais e burocratizam as garantias constitucionais dos outros que passam sobre suas mesas como nomes e números, acionando carimbos e assinando documentos com a brutalização que o excesso de trabalho exige.

Outro indicativo assusta: é senso comum que uma grande parte dos advogados criminalistas está preocupada apenas com lavagens monetárias, elisões fiscais, agiotagens, sonegações, gestões fraudulentas, etc., deixando convenientemente para o Poder Público a realização e a garantia dos direitos dos mais necessitados.

Parece, aliás, existir uma escala de excelência fundada no ganho econômico produzido pela causa: inicia-se a carreira com crimes sexuais, segue-se para aqueles do patrimônio de pouca monta, para os contra o Estado, e se atinge a “maturidade” profissional dos crimes econômicos.

Isso é ainda mais triste, já que a eles desde a origem foi confiada a guarda e a luta pelos valores humanos. Isso significa dizer que, para além da ineficiência do Estado, de ausência de muitas defensorias públicas estaduais, de estrutura carcerária adequada, de reinserção do “egresso”, etc., a crise se opera dentro do ambiente jurídico.

Convém perguntar se esse quadro não se inicia já com o ensino jurídico que parece dominado por uma apatia no que se refere às questões tocantes aos direitos humanos.

Afinal, como o ambiente jurídico em que se vive é especialmente constituído quando da formação do jurista ao estudar Direito (venha ele a ser professor, pesquisador, advogado, promotor, juiz, etc.) fica evidente que, mais do que mera ineficiência técnica, parece faltar um maior vigor no mundo juscadêmico no tocante ao trato dos direitos individuais e na sua construção sob a condição nacional. É interessante, por exemplo, que teses após teses sejam escritas sobre os direitos humanos.

Isso é fantástico do ponto de vista científico, à medida que chama atenção dos teóricos a refletir sobre o nosso “verdadeiro” problema, assim como desperta o interesse da mídia em publicizar o desrespeito à Carta de São José da Costa Rica.

Contudo, o discurso que se tem construído academicamente no Brasil, salvo exceções, continua sendo eurocêntrico, pois ainda o imaginário da metrópole e seu ápice civilizatório permeiam parte significativa dos juristas.

Ainda classificamos os direitos humanos em gerações, tal quisera Bobbio, ainda pensamos como um país periférico à “economia-mundo”, ainda classificamos nossas normas quanto à eficácia e à aplicabilidade…

Infelizmente tivemos e estamos construindo uma realidade distinta. Vivemos todos os tempos europeus a um só tempo, todas as gerações ou talvez nenhuma completamente, ainda temos uma abismosa diferença distributiva de renda, valores essencialmente distintos, modos de agir e de se conduzir variados, perspectivas de futuro também diversas, e, sobretudo, sonhos outros. O que deve nos impedir de receber pacificamente o discurso “central”.

Essa recepção absoluta é prejudicial. Instrumentos jurídicos de diversas espécies produzidos na realidade dos países desenvolvidos parecem fascinar os estudiosos brasileiros que os importam em teses curiosas e os adaptam processualmente à realidade nacional.

O resultado vem logo: institutos anacrônicos (porque atrasados ou, às vezes, porque adiantados demais) ou materialmente inadequados à realidade brasileira de país em desenvolvimento, obrigando o sistema jurídico nacional a pular etapas que deveriam acontecer naturalmente em um sistema jurídico.

Alguns poucos juristas brasileiros têm recebido filosofias latino-americanas para pensar os “direitos humanos”, o que é extraordinário. Contudo, ainda parece persistir, mesmo para parte destes, a velha concepção de que entre nós e os herdeiros espanhóis há um similitude necessária.

Isto quer dizer que ainda perdura a noção de bloco hemisférico ao sul, de “América Latina”, de “irmãos-coloniais”, etc. tal como a história do séc. XX, em grande parte por força de um pan-americanismo, procurou identificar e costurar para o continente.

Sempre se tratou a América Latina como uma única realidade, como se Brasil e Argentina possuíssem as mesmas condições de desenvolvimento; como se Bolívia e Peru estivessem sujeitos aos mesmos problemas; como se a Venezuela e a Colômbia se submetessem a mesma linha de governo…

Por outro lado, entre os “latino-americanos” é como se ainda se vestisse, contentemente, a fantasia que nos é dada pelo colonizador. Aceita-se, sem se discutir, o etiquetamento de não-central, submetendo-se à condição de igualdade em meio à massa de diferenças.

Essa experiência é bem visível e acontece da mesma forma com os povos originados da África que são identificados pelos antigos colonizadores, quando muito, por nomes referentes a vastíssimas regiões (os “magrébains”, os subsaarianos, etc…).

Esse tipo de generalização não é comumente feita para os europeus que, como é notório, sempre mantiveram evidentes as diferenças entre os países (ou mesmo entre as regiões dentro de um mesmo país).

Referir-se a eles com a genérica condição de “europeu” não pretende indicar-lhes como membros de uma mesma realidade: serve apenas para lhes dar as belas características que sempre acompanham esse identificador.

E no debate de suas diferenças os países europeus foram capazes de construir uma exuberante Comunidade Européia e, ainda mais importante, um sistema comum de proteção de direitos humanos.

Parece ainda pior o fato de que a comunidade acadêmica, especialmente aquela que produz o debate científico sobre a questão dos direitos humanos, comungue desse raciocínio latinamericanizante, sem questionar se essa é, efetivamente, uma condição natural ou, como se acredita, apenas mais um rótulo colado à nossa realidade.

A proteção dos direitos humanos não pode ser mais um discurso a serviço da política ou da economia, imensamente regionalizada hoje em dia em tempos de globalização. Não podemos nos deixar levar pela tentativa de construção de uma “teoria latino-americana” dos direitos humanos, com certa homogeneidade especialmente se copiada dos países centrais. Aceitar pacificamente isso, ainda que possa ser uma bandeira legítima de luta e servir como uma contra-reação, parece numa primeira reflexão aceitar a condição de nós latino-americanos termos a mesma história, como contaram os europeus e, em seguida, os EUA.

É evidente que as identidades existem, entretanto, é preciso que a “voz única” retome as diferenças, as particularidades de cada país, as formações geográficas e políticas próprias, as características culturais especiais de cada um, a construção normativa também singular dos direitos humanos, etc. Será na diversidade do discurso dos direitos humanos que a “América Latina” encontrará sua oportunidade de sustentação.

Logo, por exemplo, a afasia e o anacronismo do discurso sobre os direitos humanos dos presos também não pode correr o mesmo traço. Os países latino-americanos estão em estágios distintos na proteção carcerária, e a correia da história acadêmica não pode tentar amalgamá-los.

Talvez isso tenha sido válido entre os anos 60-80, sob o rescaldo do “terceiro-mundismo” ou dos “não-alinhados”, mas hoje não. Se nos países do norte, ainda há presos políticos por força de guerrilha, nós temos meninas sendo presas nas mesmas celas que os homens; se alguns países torturam abertamente, nós o fazemos no silêncio dos porões…

É talvez na ênfase das diferenças latino-americanas que se encontre a proteção dos direitos humanos, e não no grito uníssono contra-hegemônico. É talvez na valorização dos estágios diversos de desenvolvimento que se encontrem saídas adequadas. É na compreensão sobre as particularidades dos direitos, que se encontrarão caminhos para o elogio de São José da Costa Rica.

A luta pelos direitos humanos não pode se dar com base nos papéis que foram outorgados à América Latina pela história contada em inglês e em francês. Essa luta se faz no reconhecimento das idiossincrasias de cada região e na busca de soluções próprias a cada realidade.

Desse modo não se apanha uma leitura pronta do problema, copiada de um mundo que pouco tem a ver com a realidade nacional. É, portanto, enfim, preciso fazer da “diversidade” a única voz, como diz a própria essência dos direitos humanos (é preciso universalizar!), e não da identidade latino-americana a voz única dos diferentes, dos excluídos. É preciso pensar…

Érica de Oliveira Hartmann é advogada, doutoranda, mestre e bacharel em Direito Processual Penal pela UFPR, bolsista-doutoral em Criminologia na Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Bologna-Itália; professora de
Direito Processual Penal e Prática Penal no Unicenp e membro do grupo de estudos de Direitos Humanos na Universidade Positivo.

Guilherme Roman Borges é advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, bolsista doutoral do governo brasileiro na Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia (Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon Tméma Philosophías Panepstímio
Pátron Elleniké Demokratía); professor de Economia e Política Internacional, e, membro do grupo de estudos de Direitos Humanos na Universidade Positivo.

Rui Carlo Dissenha é advogado, doutorando em Direitos Humanos na USP; mestre em Direito Penal e bacharel na UFPR; Diplôme Supérieur de l’Université de Paris II Panthéon-Assas, France; LLM in Public International Law with International Criminal Law Specialization at Leiden University, The Netherlands; bolsista doutoral do governo brasileiro na Università di Bologna; professor de Direito Penal e coordenador do grupo de estudos de Direitos Humanos na Universidade Positivo.