Efeitos da desclassificação nos crimes de bagatela

Já se passaram quase dez anos que a Lei n.º 9.099/95 entrou em vigor, e muitas matérias relacionadas com o direito penal ou processual penal ainda não foram interpretadas a contento, sendo de lamentar que na nossa doutrina, apesar do vasto número de obras que produziu sobre este tema, sequer tocou em muitos pontos importantes, confirmando meu ponto de vista de que normalmente se escreve sobre matérias que já se escreveu.

1. Dia destes um Promotor de Justiça me questionou quanto ao encaminhamento que deveria ser dado a uma persecução criminal em que houve a desclassificação do delito pelo Tribunal do Júri, de tentativa de homicídio, para lesão corporal leve. Dizia ele que o juízo, em razão da desclassificação, remeteu o feito para o Juizado Especial Criminal para processamento e julgamento, tendo ele oferecido proposta de acordo e nova denúncia indicando o novo tipo penal, a qual não foi aceita pelo juízo ao fundamento de que não poderia haver duas denúncias. Afirmou ainda que fez e encomendou pesquisas, não logrando encontrar nada sobre esta matéria, e em consulta a diversos estudiosos do direito, obteve respostas diferentes.

Penso que esta questão deva ser resolvida a teor do artigo 492, § 2.º, do Código de Processo Pena, o qual regula o encaminhamento a ser dado ao feito em trâmite perante o Tribunal do Júri, quando ocorre a desclassificação para delito com outra competência. Verbis: “Se for desclassificada a infração para outra atribuída à competência do juiz singular, ao presidente do tribunal caberá proferir a sentença.”

Esta regra se sobrepõe àquela contida nas leis n.ºs 9.099/95 e 10.259/01, as quais conferem competência ao Juizado Especial Criminal para processar e julgar os feitos criminais quando o apenamento corporal máximo não ultrapassar a dois anos, sendo esta conclusão extraída do fato de que a competência originária para processamento e julgamento da acusação nos crimes contra a vida é determinada pela Lei Maior (art. 5.º, inciso XXXVIII, letra “d”), devendo ser interpretada a norma instrumental penal citada, como verdadeira norma regulamentadora da disposição constitucional em referência.

Assim, constata-se que a competência em análise tem origem constitucional, sobrepondo-se, por isso, sobre as regras de competência contempladas nas leis n.ºs 9.099/95 e 10.259/01.

E como fica o acusado quanto ao seu direito de receber o apenamento previsto para os crimes considerados de pequeno potencial lesivo?

A questão resolve-se no juízo do Tribunal do Júri, onde após a desclassificação do delito deve-se abrir vista ao Ministério Público para oferecimento, ou não, de proposta para aplicação das sanções previstas no artigo 76 da Lei n.º 9.099/95.

Oferecida a proposta, o juízo do Tribunal do Júri designará audiência de transação, não havendo impedimento de que tudo isso ocorra no mesmo dia da seção do julgamento popular, a qual, uma vez aceita a proposta ofertada pela acusação encerra-se ali a persecução criminal.

Não aceito os termos da transação, penso que não seja o caso de oferecimento de nova denúncia, quando a originária descrever explicita ou implicitamente o tipo penal desclassificado, e nem de nova instrução, nos termos do disposto no artigo 77 e seguintes da Lei n.º 9.099/95, sendo o caso de ser proferida sentença.

Isto porque a acusação já se encontra formalmente pronta, sem qualquer cerceio à defesa ao acusado, e as provas que deveriam ser colhidas durante a instrução do feito, já ocorreram e foram acompanhadas segundo os efetivos fundamentos acusatórios, especialmente do contraditório.

Já no caso da denúncia não descrever o novo tipo penal, ainda que tenha havido a desclassificação pelo Tribunal do Júri, é indispensável que seja oferecida nova denúncia, em respeito aos princípios constitucional do contraditório e da ampla defesa, e da necessidade de haver correlação entre a inicial acusatória e a decisão condenatória. Isto porque, no caso em análise, não basta para fins de conferir ampla defesa ao acusado, que apenas se diga que houve lesão corporal na vítima e que o réu foi o seu autor, sendo indispensável que a peça acusatória diga que o autor da infração também teve intenção de praticar ditas lesões.

Neste caso as partes têm direito a nova instrução criminal, pois as provas colhidas anteriormente não foram produzidas sob o manto do contraditório segundo os termos da peça acusatória.

No caso do Ministério Público deixar de oferecer proposta para transação e a parte a requeira expressamente, a nossa posição é no sentido de que cabe ao Juiz decidir o litígio, isto porque discordamos da posição atualmente pacífica nos nossos Tribunais Superiores, no sentido de que nestes casos aplica-se o artigo 28 do Código de Processo Penal (Sobre esta matéria já tivemos oportunidade de escrever, in, Manual da Sentença Penal Condenatória, Curitiba, Juruá, 2003, p. 115). Mas para aqueles que concordam com a posição destes Tribunais, é o caso de aplicar a citada regra.

2. Quanto aos delitos de competência do juízo singular de procedimento ordinário, como por exemplo, desclassificação do delito de circulação de moeda dolosa para culposa (art. 289, respectivamente, caput e § 2.º, do Código Penal), os autos devem simplesmente ser remetidos ao Juizado Especial Criminal, o mesmo ocorrendo quando o delito for de procedimento especial, como é o caso dos crimes de tóxicos. Sobre esta questão recentemente o E. STJ decidiu, fincando entendimento de que mesmo nos delitos de rito especial deve-se aplicar o art. 76 quando houver desclassificação, possibilitando ao acusado a oportunidade de avaliar a viabilidade, ou não, de aceitar a proposta de transação penal.

Neste particular é de relevância a posição dos nossos Tribunais no sentido de que havendo a desclassificação do delito originariamente denunciado, para crime de pequeno potencial lesivo, independentemente do grau de jurisdição onde ocorra, não é possível o Tribunal simplesmente desclassificar a infração e aplicar nova sanção penal, mas sim deve determinar a remessa dos autos ao juízo competente (Tribunal do Júri ou Juizado Especial Criminal) para possibilitar ao acusado a oportunidade de transação penal.

3. Feitas estas considerações concluímos:

Nos feitos de competência do Tribunal do Júri, havendo a desclassificação, permanece a competência deste Areópago para aplicar o procedimento previsto para os delitos de pequeno potencial lesivo.

Quando os delitos originários forem de procedimento ordinário ou especial, a competência sempre será do Juizado Especial Criminal.

Havendo a inicial acusatória descrito explicita ou implicitamente o delito para o qual houve a desclassificação, não há necessidade de nova denúncia e nem de nova instrução criminal. Neste caso o acusado não aceitando a proposta de acordo, basta que o julgador profira sentença.

Nos casos em que a denúncia não descreve explicita ou implicitamente novo delito, deve ser oferecida nova denúncia, agora imputando a acusação desclassificada, sendo necessária também nova instrução criminal.

Se o representante do Ministério Público não oferecer proposta e o acusado a requerer, ao nosso ver o juiz deve decidir, mas a posição dos nossos Tribunais Superiores é de que deve ser aplicado o artigo 28 do Código de Processo Penal.

Na hipótese do representante do Ministério Público recusar-se a oferecer denúncia, requerendo o arquivamento da persecução criminal, somos de entendimento de que não cabe a aplicação do artigo 28 do Código de Processo Penal, nos Juizados Especiais Criminais, por entendermos incompatível o procedimento para os delitos de pequeno potencial com a citada norma processual, cujos fundamentos pretendemos oportunamente escrever.

Jorge Vicente Silva

é advogado, professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas, pós-graduado em Pedagogia a nível superior e Especialista em Direito Processual Penal pela PUCPR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, “Tóxicos – Análise da nova lei”, “Manual da Sentença Penal Condenatória”, e no prelo, “Estatuto do Idoso – Aspecto Penal e Processual Penal” e “Crime Fiscal – Manual Prático”. E-mail: “jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br”, Site “jorgevicentesilva.com.br”

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