Efeitos da Convenção 87 da OIT no sistema sindical

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou, a unanimidade, o parecer do então senador José Eduardo Dutra sobre o Projeto de Decreto Legislativo n.º 16, Projeto de Decreto Legislativo n.º 58-B, de 1984, na Câmara dos Deputados, Mensagem n.º 256, de 31/05/1949, do Poder Executivo, que aprova o texto da Convenção n.º 87, relativa à Liberdade Sindical e à Proteção do Direito Sindical, adotada em São Francisco, em 09/07/1948, por ocasião da 31.ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho. Anteriormente, o projeto recebera parecer favorável da Comissão das Relações Exteriores, em 10 de agosto de 1995. Agora, o projeto de Decreto Legislativo está pronto para ser apreciado pelo plenário do Senado, na sua nova composição. Novo relator será indicado, tendo em vista que o senador José Eduardo Dutra é, atualmente, o presidente da Petrobrás. A aprovação foi no apagar das luzes na legislatura anterior (11 de dezembro) e sem que houvesse a oportunidade do movimento sindical dos trabalhadores e dos empregadores manifestar-se sobre a oportunidade da aprovação, embora seja matéria de importância fundamental para o debate da liberdade e autonomia sindical. Há necessidade de que haja o debate neste momento em que o Senado reinicia suas atividades, eis que a Convenção 87 da OIT poderá ser aprovada em definitivo e, em seguida, promulgada por decreto do presidente da República.

Constragimentos e cobranças: o parecer do senador José Eduardo Dutra apresenta as seguintes análises: “Há mais de meio século desafia o Parlamento brasileiro, dividido entre o constrangimento de rejeitá-la por inconstitucionalidade, cedendo a pressões de entidades constituídas sob a égide do modelo corporativista heterônomo e as cobranças internas e externas pela adoção de uma das diretrizes fundamentais da Organização Internacional do Trabalho. A Convenção n.º 87, da OIT, dispõe sobre a liberdade de associação, de empregadores e empregados, sem prévia autorização do poder público, a desdobrar-se na autonomia de elaboração dos estatutos, regulamentos e processos constitutivos de órgãos diretivos dos sindicatos, objetada a intervenção estatal, no que concerne a seu regular funcionamento, condicionando-se, todavia, a ação sindical ao respeito à lei. Estabelece a vedação de dissolução ou suspensão de entidade sindical por via administrativa, bem como consagra a irrestrita faculdade de articulação de entes de base em organismos superiores e de filiação a organizações internacionais.

Inconstitucionalidade e unicidade sindical: continua o parecer: “Abalizadas autoridades têm sustentado, no plano doutrinário, a “inconstitucionalidade” da ratificação da Convenção sob exame. Argumenta-se, em síntese, que o inciso II do art. 8.º da Constituição Federal, ao dispor sobre a proibição de “criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial” estaria a desautorizar o regime de liberdade organizacional, em matéria sindical, em favor de uma unicidade “definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados”. “…creio que a mitigada interpretação constitucional teleológica, qual seja, a que se orienta pela consecução de interesses almejados pela norma, nos fornece razoável base para, sem decretar a inconstitucionalidade do inquinado dispositivo, abordá-lo de forma compatível com o escopo da ação sindical. A função do sindicato deve ser a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria que representa, em questões judiciais ou administrativas, destacando-se as tratativas para a elaboração da norma coletiva de trabalho (art. 8.º, inciso III e VI, CF). Cabe indagar se os milhares de sindicatos de trabalhadores hoje existentes no Brasil, resguardada a representação unitária na base territorial, conseguem realizar, a contento, aquilo que é sua precípua função. Uma avaliação sincera sobre esse panorama leva qualquer estudioso mais dedicado ao tema a conclusões desalentadoras”.

Sindicalismo alemão e brasileiro

: exemplifica o relator: “É curioso notar que em um país como a República Federal da Alemanha, onde o conjunto formal de assalariados é da ordem de 50 milhões (e a população total é a metade do Brasil), existem menos de vinte sindicatos, não obstante o art. 9.º do Texto Constitucional Alemão assegurar a irrestrita liberdade de organização sindical. No Brasil, por outro lado, para um universo de, segundo dados recentes do IBGE, menos de 20 milhões de empregados formais (e o dobro da população, em relação à Alemanha), à guisa de prestígio à unicidade “fortalecedora” de sindicatos, pululam mais de dez mil sindicatos nos registros oficiais. Ante tais dados, a pergunta óbvia é: onde as entidades sindicais são, de fato, mais fortes e eficazes? Os alemães parecem ter resolvido melhor o problema da compatibilização da liberdade de organização com a real capacidade de ação dos sindicatos de trabalhadores. Lá, o que dá identidade a um sindicato não é o carimbo oficial, mas a observância da efetividade da representação, frente ao poder econômico. Exercitar verdadeira “pressão” sobre o patronato é pressuposto inarredável para que se reconheça em uma entidade, dita sindical, a legitimação para a contratação coletiva, nos termos do § 2.º, seção I, da Lei de Contratação Coletiva Alemã”.

Compatibilidade com a Constituição Federal

: e, ainda: “É, portanto, a verificação da dimensão do contrato coletivo de trabalho como resultado de um livre acordo de vontades entre partes equivalentes na entabulação de regras coletivas que dá status sindical a uma organização laboral, ante uma empresa ou associação de empresas ou de ramo produtivo, ou perante o próprio poder público. Nesse sentido, se interpretarmos a expressão “criação” a que alude o inciso II do art. 8.º da Constituição Federal expungida de todo viés cartorial e lhe atribuirmos o sentido de insipiência da mobilização de empresários e trabalhadores para uma pactuação que reflita a harmonização autônoma, contratada, entre capital e trabalho – sob um prisma processual, dialético, de concessões mútuas e reciprocidade de ofertas – veremos ser possível combinar liberdade de organização sindical com representação unitária, aferível, caso a caso, pelos interessados, na formatação de acordos e convenções coletivas de trabalho. Nessa linha, a ratificação da convenção em tela seria perfeitamente compatível com a Constituição Federal”. Estas análises foram aprovadas através do voto que “opinou favoravelmente à aprovação do Projeto de Decreto Legislativo n.º 16, de 1984 (n.º 58-B, de 1984, na Casa de origem), por considerá-lo elaborado em boa técnica legislativa, juridicamente adequado e destituído de qualquer vício de inconstitucionalidade”.

Integração ao direito interno

: na nossa visão, um dos efeitos imediatos da aplicação da Convenção 87 da OIT relaciona-se com sua integração ao direito interno. Se aprovada pelo Senado mediante Decreto Legislativo, o Presidente da República a promulgará por Decreto, sendo remetida para publicação, eqüivalendo à ratificação da Convenção pelo Brasil já que, antes, havia a simples adesão. Em seguida, o governo federal deverá proceder ao registro do Decreto e do texto da Convenção por depósito perante o diretor-geral do Secretariado da OIT e a Convenção entrará em vigor doze meses após referi do registro. Esse caminho a percorrer. Neste caso, as normas inseridas na Constituição Federal, artigo 8.º, serão atingidas pelas normas da Convenção 87 da OIT? Na hierarquia das leis, o artigo 8.º é norma constitucional prevalecente e “as Convenções da OIT são tratadas com hierarquia superior às leis, porque tratam de direitos humanos, e para cuja aprovação adotou-se procedimento mais complexo” (Gunther, “Normas da OIT e o direito interno”, Caderno Direito & Justiça, 02.06.2002). Convenção da OIT não é lei complementar, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal: “Conseqüente impossibilidade jurídica de Tratado ou Convenção internacional atuar como sucedâneo da lei complementar exigida pela Constituição” (ADI 1840). Portanto, as regras do Tratado/Convenção deverão estar adequadas ao que determina a Carta Magna. Nenhum dos dispositivos constitucionais deixarão de ser aplicados e as regras da Convenção serão a eles ajustadas. Os direitos e garantias expressos na Convenção 87 da OIT estarão incluídos no direito interno face a norma do parágrafo 2.º do artigo 5.º da Constituição Federal.

Derrogação do sistema sindical brasileiro

: a longa hibernação da Convenção 87 no Congresso Nacional está ligada ao receio de que a mesma viria derrogar o sistema sindical, quer aquele em vigor antes da Constituição de 1988 – unicidade controlada pelo Estado – ou o atual, em que há unicidade, mas dentro do sistema de liberdade de criação da entidade sindical com autonomia perante o Estado. Receio que residia na possibilidade de que, com a adoção da Convenção 87, ocorreria a ampla pluralidade sindical. Receio com certa procedência, pois as normas da Convenção indicam que “os trabalhadores e os empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão o direito de constituir, sem prévia autorização, organizações de sua própria escolha e, sob a única condição de observar seus estatutos, a elas se filiarem” (art.2.º), “eleger livremente seus dirigentes, organizar sua administração e atividades e formular seus programas de ação” (art.3.º) e “a aquisição de personalidade jurídica … não estará sujeita a condições que restrinjam a aplicação do disposto nos artigos 2.º, 3.º e 4.ºª (art.7.º). Estas regras possibilitariam a eliminação do sistema confederativo, por representação categoria economia e profissional de associados e não associados, a unicidade sindical por categoria e município, controle de registro no Ministério do Trabalho, direito a arrecadação de contribuição sindical compulsória . Na prática, portanto, desmontando o sistema atual, implodindo-o, atomizando-o e inviabilizando-o.

Não haverá prevalência sobre a norma constitucional: Em verdade, se aprovada a Convenção 87, ela não poderia prevalecer sobre o artigo 8.º da Constituição Federal, pelo que, na prática, nenhum efeito concreto ocorreria, já que a norma constitucional se mantém, fixando o sistema sindical, sua criação e constituição, além de dispositivos específicos quanto a representatividade, extensão, prerrogativas. Mas há a possibilidade de interpretação diversa, ou seja, de que a Convenção 87 poderia se antepor e dispor contrariamente à Constituição, embora não seja esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal, órgão que detém a “possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de Tratados ou Convenções internacionais em face da Constituição da República” (ADI 1840). Disputas administrativas e judiciais diante da criação de entidades sindicais fora do sistema sindical assegurado constitucionalmente poderiam proliferar, com a criação de sindicatos intercategorias, fora do sistema confederativo, por local de trabalho, enfim, generalizando-se uma confusão jurídica de conseqüências imprevisíveis. Daí porque a não aprovação da Convenção 87 da OIT tem sido justificada para que se evite esta confrontação jurídica prejudicial às relações de trabalho.

Ainda há tempo para o debate:

os setores interessados têm tempo para colocar estas questões nos debates no Senado Federal, no posicionamento do governo federal, nas entidades sindicais e nos segmentos organizados da sociedade por se tratar de matéria relevante, eis que a organização sindical é um dos pressupostos básicos da manutenção de nossa Democracia. E também poderá ser um dos pontos de destaque nos debates no Fórum Nacional do Trabalho, a ser constituído por iniciativa do Ministro do Trabalho Jaques Wagner.

Edésio Passos

é advogado, assessor jurídico de entidades sindicais de trabalhadores, membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, membro do corpo técnico do DIAP e ex-deputado federal (PT/PR). E-mail:
edesiopassos@terra.com.br

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