É um tempo de mudanças

Michael Löwy e Frei Betto escreveram longo texto divulgado durante o II Fórum Social realizado em janeiro deste ano em Porto Alegre, no qual traduzem algumas das questões centrais desse nosso tempo de mudanças. Em especial, o texto analisa princípios e valores da nova sociedade, matéria central para orientar os rumos dos nossos novos governantes que, dentro de algumas horas, passarão a ser os instrumentos principais das mudanças desejadas pelo nosso povo, traduzidas em forma de votos no recente processo eleitoral. No campo do Direito e da Justiça, suportados pela Lei, princípios e valores são os destinatários finais para todos aqueles que estão envolvidos em conflitos e demandas. E em todo o tempo de mudanças, conflitos e demandas são a massa do cotidiano na qual todos nós, operadores do Direito, colocamos as mãos. Por isso, e neste contexto, valer transcrever alguns pontos, dado o limite do espaço, assinalados pelo sociólogo Löwy e pelo escritor Frei Betto.

“Já no século 19, um crítico da economia política havia previsto, com lucidez profética, o mundo de hoje: “Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os seres humanos haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico, e pode alienar-se. É o tempo em que as coisas mesmas, que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas nunca vendidas; conquistadas, mas nunca compradas virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc., em que tudo, enfim, passou para comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, tendo-se tornado valor renal. É levada ao mercado para ser apreciada por seu valor adequado”. (Karl Marx, Misere de la Philosophi, Paris, Ed. Sociales, 1947, p.33.)

Face a esta civilização da mercantilização universal, que afoga todas as relações humanas nas “águas geladas do cálculo egoísta”, o Fórum Social Mundial representa, antes de tudo, uma recusa: ” O mundo não é uma mercadoria”. Isto é, a natureza, a vida, os direitos do homem, a liberdade, o amor, a cultura não são mercadorias. Mas o FSM encarna também a aspiração a um outro tipo de civilização, baseada em outros valores que não o dinheiro ou o capital. São dois projetos de civilização e duas escalas de valores que se enfrentam, de forma antagônica e irreconciliável, no umbral do século 21. Quais os valores que inspiram esse projeto alternativo? Trata-se de valores qualitativos, éticos, políticos, sociais e culturais, irredutíveis à qualificação monetária. Valores que são comuns à maior parte dos grupos e das redes que constituem o grande movimento mundial contra a globalização neoliberal. Podemos partir dos três valores que inspiram a Revolução Francesa de 1789 e, desde então, estão presentes em todos os movimentos de emancipação social da história moderna: liberdade, igualdade e fraternidade.

O que significa “Liberdade”? Antes de tudo, liberdade de expressão, de organização, de pensamento, de crítica, de manifestação, duramente conquistada em séculos de lutas contra o absolutismo, o fascismo e as ditaduras. Mas também, e hoje mais do que nunca, a liberdade em relação a uma outra forma de absolutismo: à ditadura dos mercados financeiros e da elite de banqueiros e empresários multinacionais que impõe seus interesses no conjunto do planeta. Uma ditadura imperial sobre a hegemonia econômica, política e militar dos Estados Unidos, única superpotência global – que se esconde por detrás das anônimas e cegas “leis do mercado”, e cujo poder mundial é bem superior ao do Império Romano ou dos impérios coloniais do passado. Uma ditadura que exerce pela própria lógica do capital, mais que se impões com ajuda de instituições profundamente antidemocráticas, como o FMI ou a OMC, e sob ameaça do seu braço armado (a Otan). O conceito de “libertação nacional” é insuficiente para dar conta desse significado atual da liberdade, que é, ao mesmo tempo, local, nacional e mundial, como o demonstra tão bem esse movimento profundamente original e inovar que é o zapatismo.

O que significa igualdade? Nas primeiras constituições revolucionárias inscreveu-se a igualdade perante a lei. Esta é absolutamente necessária – e longe de existir na realidade do mundo de hoje – mas bem insuficiente. O problema de fundo é a monstruosa desigualdade entre o norte e o sul do planeta e, dentro de cada país, entre a pequena elite que monopoliza o poder econômico e os meios de produção, e a grande maioria da população, que vive da sua força de trabalho – quando não está no desemprego, e excluído da vida social. As cifras são conhecidas: quatro cidadãos dos EUA – Bill Gates, Paul Allen, Waner Buffett e Larry Ellyson – concentram em suas mão uma fortuna equivalente ao produto interno bruto de 42 países pobres, com uma população de 600 milhões de habitantes. O sistema da dívida externa, a lógica do mercado mundial e o poder ilimitado do capital financeiro levam a um agravamento dessa desigualdade, que aumentou nos últimos vinte anos. A exigência de igualdade e de justiça social – dois valores inseparáveis – inspira os vários projetos socioeconômicos alternativos que estão na ordem do dia. Do ponto de vista de uma perspectiva mais ampla, que implica um outro modo de produção e distribuição.

O que significa fraternidade? É a tradução moderna no velho princípio judaico-cristão: o amor ao próximo. É a substituição das relações de competição, concorrência feroz, guerra de todos contra todos – que fazem do indivíduo, na sociedade atual, um homo homini lupos (um lobo para os outros seres humanos) -, por relações de cooperação, partilha, ajuda mútua, solidariedade. Uma solidariedade que inclui não só os irmãos (frater, em latim), mas também as irmãs e que supera os limites da família, do clã, da tribo, da etnia, da comunidade religiosa, da nação, para se tornar autenticamente universal, mundial, internacional. Em outras palavras: internacionalista, no sentido que deram a esse valor gerações inteiras de militantes do movimento operário e socialista.

Há outro valor que, desde 1789, é inseparável dos outros três: a democracia. Não só no sentido limitado que esse conceito político tem no discurso liberal/democrático – a livre eleição de representantes a cada tantos anos, na realidade deformada e viciada pelo controle que exerce o poder econômico sobre os meios de comunicação. Essa democracia representativa – também fruto de muitas lutas populares, e constantemente ameaçada pelos interesses dos poderosos, como o demonstra a história da América Latina de 1964 a 1985 – é necessária mas insuficiente.O grande desafio, do ponto de vista de um projeto de sociedade alternativa, é estender a democracia para o terreno econômico e social. Por que permitir , nesse campo, o poder exclusivo de uma elite que recusamos na área política? Uma democracia social significa que as grandes opções socioeconômicas, as prioridades de investimentos, as orientações fundamentais da produção e da distribuição são democraticamente discutidas e decididas pela própria população, e não por um punhado de exploradores ou pelas supostas “leis do mercado” (ou, ainda, variante que já foi à falência, por um birô político onipotente).

A esses grandes valores, produto da história revolucionária moderna, devemos acrescentar um outro, que é ao mesmo tempo o mais antigo e o mais recente: o respeito ao meio ambiente. Encontramos esses valor no modo de vida das tribos indígenas das Américas e das comunidades rurais pré-capitalistas de vários continentes, mas também no centro do moderno movimento ecológico. A mundialização capitalista é responsável por uma destruição e um envenenamento acelerados em crescimento geométrico do meio ambiente poluição da terra, do mar, dos rios e do ar; “efeito de serra”, com conseqüências catastróficas; perigo de destruição da capa de ozônio, que nos protege das irradiações ultravioleta mortais; aniquilamento das florestas e da biodiversidade. Uma civilização da solidariedade não pode ser senão uma civilização da solidariedade com a natureza, porque a espécie humana não poderá sobreviver se o equilíbrio ecológico do planeta for rompido.

Como resumir em uma palavra esse conjunto de valores presentes, de uma forma ou de outra, no movimento contra a globalização capitalista, nas manifestações de rua de Seattle a Gênova, e nos debates do Fórum Social Mundial? Cremos que a expressão “civilização da solidariedade” é uma síntese apropriada desse projeto alternativo. Isso significa não só uma estrutura econômica e política radicalmente diferente, mas, sobretudo, uma sociedade alternativa que valorize as idéias de bem comum, de interesse público, de direitos universais, de gratuidade. A civilização da solidariedade é uma civilização socialista.

Para concluir: um outro mundo é possível, baseado em outros valores, radicalmente antagônicos aos que dominam hoje. Mas não podemos esquecer que o futuro começa desde agora: esses valores já estão prefigurados nas iniciativas que orientam o nosso movimento hoje.

O futuro começa hoje e aqui, nessas sementes de uma nova civilização, que estamos plantando em nossa luta, e como o nosso esforço de construir homens e mulheres novos a partir dos valores subjetivos e éticos que assumimos em nossas vidas militante”.

Edésio Passos

é advogado e ex-deputado federal(PT/PR). E.mail:
edesiopassos@terra.com.br

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