E se a Constituição for a nossa cara?

De tudo já se disse a respeito da Constituição Federal de 1988. É bem provável no entanto que os comentários jocosos, destrutivos, maliciosos, negativos, tenham superado os encômios. E dentre as críticas destrutivas que recebeu ao longo de sua infância e adolescência, aquela que mais lhe bateu forte me parece ter sido a de que uma Constituição prolixa torna um país ingovernável. Daí que, para inúmeros políticos (do Poder Executivo e do Poder Legislativo), para parcela dos membros do Poder Judiciário e lamentavelmente também para alguns constitucionalistas, o Brasil era, até bem pouco tempo, ingovernável por possuir uma Constituição pesada, grande demais.

Com efeito, nosso texto constitucional de 1988 destoa daqueles modelos de Constituições curtinhas, sequinhas, com uma meia dúzia de artigos, como a norte-americana. Por outro lado, se compararmos nossas próprias Constituições entre si, veremos que nehuma das sete que antecederam a de 1988 eram breves. Claro que em relação à última, de 1969 (reconhecida pela maior parte dos constitucionalistas como efetivamente uma Constituição, embora tecnicamente tenha surgido por uma Emenda Constitucional), a atual deu uma incrementada marcante no número de artigos: originariamente, de 200 para 315. Porém, se ainda compararmos nosso texto de 88 com outros similares contemporâneos, veremos que longe estão os países de terem textos constitucionais tão concisos como o dos EUA. E mais, basta olharmos a primeira Constituição escrita da Europa – a francesa de 1791 – para confirmarmos que ela possuía 210 artigos. E ninguém nunca deixou de ser governado ou, mais propriamente, nenhum país deixou de se governar por culpa da extensão do texto de sua Constituição.

Por outro lado as Constituições, por mais que imponham tarefas aos Estados, desenhando um devir, sempre espelham a arraigada cultura de um povo. Assim, é muito provável que a Constituição de 1988 reflita exatamente as virtudes e os defeitos do povo brasileiro. E se ela é extensa, é porque não somos sutis ao ponto de termos regras claras e objetivas com paralela economia de palavras. Não, não somos dados às sutilezas; nós somos explícitos, minudentes e repetitivos, e bem por isso precisamos inserir e repetir no texto constitucional regras que pareceriam óbvias em outras culturas.

Voltando ao ponto inicial, culpou-se muito – e ainda culpa-se – a Constituição pela ingovernabilidade do Brasil. Por trás dessa acusação leviana esconde-se, não é difícil notar, o inconformismo e o descontentamento de algumas parcelas da sociedade com o ingresso de novos direitos e garantias nesse texto constitucional que agora completa seus 15 anos.

Parti pris, se a Constituição é “exagerada”, é porque nós, brasileiros, somos exatamente assim: exagerados, expansivos, largos nos sorrisos e nas maneiras. Somos abundantes nas cores, nos decotes, nas mesas postas, na voluptuosidade da exibição dos corpos masculinos e femininos. Somos fartos na exposição de nossas vaidades, mas também na admiração do que vem de fora. Falamos alto, furamos filas, mas também somos exuberantemente solidários, acolhedores, hospitaleiros, sensíveis, emotivos. Um sem-número de outros defeitos e qualidades poderiam ser elencados, mas os listados já nos bastam para provarmos uma tese irrefutável: a tese de que a Constituição é a nossa cara!

E assim o é por ser expansiva, com preceitos longos, cheia de barrocos. Muito disso pode ser enfeite, cláusulas dispensáveis e até supérfluas. Mas no meio de todo esse rococó ela porta muitos direitos muito fundamentais, e só por isso já está perdoada desde o dia do seu nascimento, pois ainda que tivesse 500 artigos o que importa é que trouxe um elenco de direitos nunca antes visto tão completo e tão inovador; tão quiméricos, dirão alguns, mas tão necessários dirão outros.

A Constituição modelo, dos EUA, enxuta na forma, aquela Barbie elegante, ou antes aquela Twiggi esquálida, quase anoréxica (ainda que inglesa), talvez não nos sirva. Não somos assim, somos exuberantes; nossas modelos são cheias de curvas e de fartos seios, se já não por natureza, pelo modismo siliconado que, embora questionável, vem para confirmar uma mística nacional. E nossa Constituição é assim, como a maior parte de nossas mulheres, extrovertidas, alegres, cheias de brilho e generosas.

Ocorre que esta Constituição de 1988 não serve do ponto de vista dos que julgam o País ingovernável pelo demasiado expansionismo de seu texto. Porém, sendo a Constituição a nossa cara, não servimos nós também? Ou não será que sendo nós que pomos a Constituição, não nos servem os donos daquelas opiniões?

Gisela Maria Bester Benitez

é professora de Direito Constitucional nas Faculdades Integradas Curitiba.

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