Do dano moral ao consumidor

Curiosamente os dados cadastrais constantes dos arquivos das empresas de proteção ao crédito passaram a funcionar como uma espécie de identidade dos consumidores em nossa sociedade eminentemente mercantilista e consumista. Com efeito, tem-se uma carteira de identidade expedida pelo Estado para que as pessoas sejam identificadas como cidadãs brasileiras; tem-se o CPF para precisar nossa condição de contribuinte; tem-se o título de eleitor para nos identificarmos como eleitores; e, agora, tem-se as listas de restrição ao crédito como supostamente idôneas a qualificarem os consumidores como bons ou maus pagadores. Quem não tem Título de Eleitor, não vota; quem tem seu nome incluído nos cadastros negativos, não tem acesso ao crédito no mercado de consumo.

Nessa ordem de idéias, negar a importância de tais cadastros é negligenciar o dinamismo do tráfego comercial e, ao mesmo tempo, saudosismo estéril do tempo em que as operações de vendas eram realizadas somente com base na palavra das pessoas. No entanto, não obstante a relevância que essas fontes de consulta representam na atual conjuntura, é inadmissível conceber que as mesmas se convertam em instrumentos de coerção suscitadores de prejuízos (patrimoniais e/ou morais) ao consumidor idôneo e bom pagador, o qual, em vista dos abusos e da total libertinagem constatada na manipulação desses cadastros, se torna alvo fácil de registros desabonadores.

É comum que o consumidor sequer tome ciência do lançamento de seu nome nas “listas negras”. Com efeito, a vergonhosa ausência de critérios e de um controle prévio para garantir a veracidade e a exatidão dos dados que alimentam os cadastros dos órgãos de cerceamento de crédito, tais como, SCPC e Serasa, fazem configurar um sistema de informações, que lida com dados atinentes a própria reputação e dignidade de um consumidor, incapaz de fornecer uma confiabilidade adequada, conforme exige o Código de Defesa do Consumidor, resultando, em varias hipóteses, a punição injusta de consumidores adimplentes, além da vergonha, do constrangimento revertido em abalo moral.

A Promotoria de Justiça do Estado de São Paulo deparou-se com o caso de uma pessoa que havia tido seu nome registrado no Serasa, sendo constatado, logo em seguida, que o registro de protesto referia-se a Noemi Coutinho Stefanon, e não à Noemi Coutinho, conforme constava no banco de dados da empresa.

Cumpre, nesse sentido, trazer à colação trecho da reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, de 18.02.91, p. S. 1:

“A questão é que o Serasa inclui o nome na lista negra sem checar se houve culpa do correntista ou consumidor e o distribui aos serviços de proteção ao crédito. Resultando: mesmo consumidores idôneos, que tiveram cheque roubado protestado, por exemplo, são expostos a situações vexatórias. Duas opções restam a quem for prejudicado; ou retira seu nome do cadastro, pagando a dívida, ainda que não seja responsável por ela, ou recorre a uma ação judicial.

O modo defeituoso que caracteriza o funcionamento desses sistemas coloca nas mãos dos fornecedores uma arma eficaz, mas, também perigosa, que pode ser perfeitamente empregada para compelir o consumidor a assumir uma dívida que lhe é imputada, mesmo se sabendo que não seria possível fazer o mesmo pela via legal. O exemplo mencionado pela reportagem é elucidativo, pois uma pessoa idônea é obrigada a pagar um título de crédito, mesmo que o direito emergente desse mesmo título seja inexigível do ponto de vista jurídico.

Nesse sentido, não raro são encontrados consumidores que tiveram seus créditos negados em decorrência de informações inexatas que constam das temíveis listas negras, lesando a imagem do pretendente, pois que impinge a este a pecha de “mau pagador”. Via de regra, somente depois de haverem sofrido os danos é que a inexatidão dos dados negativos registrados a seu respeito são detectados e corrigidos. Os prejuízos não se consubstanciam somente no vexame e no abalo da reputação do consumidor, mas podem representar no dispêndio de ajuizar uma ação para compelir as empresas a efetuar a correção devida, já que algumas delas simplesmente se negam a fazê-lo e, em muitos dos casos, dispensam ao consumidor que busca uma reparação, um tratamento indigno, jogando-o para a vala comum e muitas vezes até mesmo sugerindo que busque na justiça a reparação dos seus direitos.

Por derradeiro, cumpre trazer à baila o magistério brilhante de Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin, um dos destacados redatores do Código de Defesa do Consumidor, que assim pontifica:

“A sociedade de consumo tem quatro características: o “anonimato” de seus atores, a complexidade de seus bens, o papel essencial do marketing e do crédito, e também a velocidade de suas transações.”

Três desses traços da sociedade de consumo estão diretamente ligados aos arquivos de consumo. Tais entidades, a um só tempo, superam o anonimato do consumidor (o fornecedor não conhece, mas alguém está a par de sua vida), auxiliam na utilização do crédito (por receber informações de terceiros sobre o consumidor, a instituição financeira, mesmo sem conhecê-lo, lhe concede o crédito), e, por derradeiro, permitem que os negócios de consumo seja feito sem delongas (se o crédito é rápido, o consumidor pode aproveitar essa economia de tempo para adquirir outros produtos ou serviços de fornecedores diversos).

Conseqüentemente, os arquivos de consumo desempenham uma função positiva na sociedade de consumo. Mas, como toda a atividade humana, estão sujeitas a abusos, e, por isso, devem ser controlados. Como precisamente alerta a exposição de motivos da Fair Credid Reporting Act, conhecido como FCRA, e promulgado em 1970 pelo Congresso Americano, como Título VI do Consumer Credit Protection Acto, “Os serviços de proteção ao crédito vêm assumindo um papel vital no reunir e avaliar o crédito de consumidores e outras informações sobre estes”. E conclui: “Há uma necessidade de assegurar que esses serviços de proteção ao crédito exercitem suas graves responsabilidades com eqüidade, imparcialidade e respeito pelo direito à privacidade do consumidor. “E ele, aqui, tem uma função tripla: garantir a privacidade do consumidor, assim como a transparência e veracidade das informações arquivadas.”(Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 4. Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 268-269.

E mais adiante, o mesmo autor preleciona que:

“O direito a ser informado da abertura de cadastro – O primeiro direito do consumidor, em sede de arquivos de consumo, é tomar conhecimento de que alguém começou a estocar informações a seu respeito, independentemente de sua solicitação ou mesmo aprovação. Em decorrência disso, o consumidor, sempre que não solicita ele próprio a abertura do arquivo, tem direito a ser devidamente informado sobre este fato. Assim ocorre para que ele possa exercer dois outros direitos que se lhe asseguram: direito de acesso aos dados recolhidos e o direito à retificação das informações incorretas.

A inscrição, sem nenhum critério, do consumidor nesses bancos de dados não pode continuar. É uma manifesta agressão aos interesses e direitos dos cidadãos, que ficam totalmente desprotegidos diante de serviços que mais denigrem do que efetivamente protegem o crédito das pessoas.

Neandra C. Vitalino Quinteiro

é acadêmica de Direito das Faculdades Maringá. E-mail: neandra&globo. Com.

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