Do cabimento de habeas corpus nas punições decorrentes de processo administrativo militar

As corporações militares discutem constantemente sobre cabimento ou não do babeas corpus em prisões disciplinares militares. A celeuma aumentou, muito mais, com a entranda em vigor da nova Constituição Federal em 1988, que em seu Art. 142 § 2.º estabelece:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 2.º – Não caberá ?habeas-corpus? em relação a punições disciplinares militares.

Essa afirmação trouxe inquietude, principalmente no meio jurídico, mas foi muito mais forte no seio das praças, que passaram a acreditar num corporativismo advindo dos escalões superiores em relação a eles.

Isto tudo não aconteceu, até por que, com a nova ordem constitucional, as organizações militares entenderam exatamente o significado do texto e é certo que para um comandante poder exercer o seu poder disciplinar, que é a sua capacidade de aplicar os regulamentos disciplinares punindo os seus subordinados, não o faria de forma arbitrária, sob pena de ver o seu ato invalidade dentro da própria caserna.

Não há o que se negar a resistência no interior dos quartéis foi e ainda é muito grande, pois os menos avisados acreditam que o exercício desse remédio compromete a sua autoridade e como corolário a disciplina e a hierarquia. É um engano muito grande dos que assim pensam, visto que, o instituto não é uma ameaça que paira sobre a cabeça da autoridade competente para punir, mas ele serve para todos os militares do soldado ao general. Lamentavelmente o que sucede é que, ainda as escolas de formação, tanto de graduados, como de oficiais ensinam que o subordinado é sempre o soldado e às vezes, o sargento, o oficial, principalmente não consegue se enxergar como subordinado. Daí porque qualquer coisa que possa resultar em benefício para o subordinado, que na relação hierárquica, também é, acredita que será um atraso para a disciplina.

Compreendamos a men legislatoris ao inserir tal parágrafo no artigo 152 da Constituição Federal, é evidente, não quis barrar de vez o hábeas corpus em prisões disciplinares, até por que o próprio Decreto 4.346, de 26 de agosto de 2002 em seu Art. 35 § 2.º, definiu regras claras do que seja ampla defesa e contraditório em processo disciplinar administrativo.

O legislador, por certo, não queria, ao editar a regra, uma invasão do judiciário nas questões disciplinares dos quartéis, sob pena de aí sim deteriorar as relações entre os superiores e subordinados de forma que aqueles, de fato, não conseguiriam comandar suas tropas, caso houvesse essa intromissão nas relações mais simples de convivência nas organizações militares. Mas é certo, também que com aquele parágrafo não quer permitir que se instalem os abusos dentro dessas Instituições, pois que aqueles militares, igualmente são cidadãos e a Constituição Federal ao criar os seus institutos disse que todos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção.

Por isso, mesmo dentro dos quartéis, as ilegalidades e os abusos estão proibidos e em casos que tais o judiciário terá que apreciar pedido que faça remissão a tais comportamentos, sem que com isso interfira na autoridade do comandante de determinada Unidade Militar, quer seja das Forças Armadas ou de Forças Auxiliares (Polícias Militares).

A tese de que o Judiciário não pode adentrar no mérito das decisões administrativas está errada, e toda vez que se estiver cometendo, em processo administrativo militar qualquer tipo de abuso, e aquele órgão for chamado a se manifestar deve fazê-lo sem o pejo de estar decidindo pelo administrador.

O Poder Judiciário, portanto, não pode e não deve ser apenas um homologador das decisões proferidas pela Administração Pública. Todas as vezes que o juiz verificar que houve uma ilegalidade ou mesmo que o mérito do ato administrativo se afastou dos princípios constitucionais, ou se encontra marcado pelo excesso, pelo arbítrio, ou qualquer outra situação, deverá corrigir esta situação.

A teoria segundo a qual o Poder Judiciário não tem competência para analisar o mérito do ato administrativo e que foi tão defendido por Hely Lopes Meirelles e outros, não deve mais prevalecer em respeito ao vigente texto constitucional. Afinal, caso seja necessário e em atendimento ao princípio constitucional segundo o qual, ?nenhuma lesão ou ameaça a direito deixará de ser apreciada pelo Poder Judiciário?, art. 5.º, inciso XXXV, da CF, o juiz deverá adentrar no mérito do ato administrativo, o que não significa, como já disse, interferência na autonomia da Administração Pública, mas o cumprimento de um direito fundamental assegurado a todos aqueles que vivem no território nacional.

Atualmente, o processo administrativo disciplinar, encontra-se sujeito aos princípios constitucionais. As afirmativas segundo as quais o processo administrativo não se assemelha ao processo judicial, com o advento da Constituição Federal de 1988, perdeu o seu significado. Na realidade, o que existe são as espécies de procedimentos que devem ser observados, conforme a natureza da transgressão disciplinar praticada, na busca de um processo administrativo disciplinar constitucional.

Ainda que o procedimento seja sumário os institutos da ampla defesa e do contraditório devem estar presentes sob pena de violação dos preceitos constitucionais. A disciplina e hierarquia são e continuaram sendo os pilares das forças militares, mas isto não significa que sanções disciplinares poderão se afastar das disposições que foram estabelecidas pelo legislador constituinte de 1988.

Há julgado do STF no sentido de que não há vedação para conhecimento das ações de habeas corpus da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence:

?O entendimento relativo ao § 2.º da art. 142 da EC/1969, segundo o qual o princípio, de que nas transgressões disciplinares não cabia habeas corpus, não impedia que se examinassem, nele, a ocorrência dos quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões (hierarquia, poder disciplinar, o ato ligado à função e pena suscetível de ser aplicada disciplinarmente), continua válido para o disposto no § 2.º do art. 142 da atual CF que é apenas mais restritivo quanto ao âmbito dessas transgressões disciplinares, pois a limita às de natureza militar. Habeas corpus deferido para que o STJ julgue o writ que foi impetrado perante ele, afastada a preliminar de seu não – cabimento. Manutenção da liminar deferida no presente habeas corpus até que o relator possa apreciá-la, para mantê-la ou não?.

Diante de tudo e antes que passemos aos comentários de cada inciso deste anexo, a conclusão é pelo cabimento do habeas corpus na prisão disciplinar militar decorrente de ilegalidade e abuso de poder. Entre outras situações cabe o remédio heróico: (a) quando a autoridade militar coatora não seja competente (art. 10 do Decr. 4.346, RDE), para aplicar a punição (não há o ato-ligado à função); (b) quando o fato que enseja a punição não esteja tipificado (anexo I, do RDE) como transgressão no regulamento (violação do inciso II da art. 5.º); (c) quando o procedimento administrativo não atendeu ao devido processo legal e todos os seus corolários da ampla defesa e do contraditório (art. 35 § 2.º Decr. 4.346) que a Constituição assegura a todos os acusados em geral (?ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal?, inciso LIV do art. 5.º da CF/88); (d) a autoridade legítima para aplicar a punição não atendeu aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (art. 16 usque 20 do Dec. 4.346, RDE) que deve governar os atos das autoridades militares (prisão abusiva); (e) quando o militar estiver preso por tempo superior ao prescrito na decisão, principalmente.

Os comentários feitos aqui, parte especial, do Regulamento Disciplinar do Exército, não são pela subtração da autoridade militar, seu legítimo poder disciplinador, o que seria um absurdo. Mas, utilizar-se da prisão como restrição do direito de ir e vir, confinando o militar, a fim de assegurar a disciplina sem a garantia da ampla defesa e do contraditório ou de forma coarctada não é, convenhamos o caminho democrático de exercer a cidadania.

O que quero dizer é que se a infração disciplinar atingiu, dada magnitude, a ensejar pena de prisão de trinta dias, por exemplo, será que esse militar deve continuar compondo os quadros da Corporação ou ser excluído a bem da disciplina? Não seria uma ilusão acreditar que o cidadão irá se emendar após sua detenção?

Certamente que o Conselho de Disciplina ou de Justificação é o ?santo? remédio, que precisa ser ministrado e aí sim, não devem intervir os defensores dos oprimidos com expressões: ?mas ele tem família, foi sempre um bom militar, é bom de serviço? e tantas outras que já conhecemos.

Não há o que se discutir o legislador jamais pretendeu abrir, com o art. 142 e seu parágrafo segundo, as portas para os abusos e as ilegalidades dentro dos Quartéis de qualquer das Instituições, sejam federais ou estaduais.

Irineu Ozires Cunha é tenente-coronel e comandante do BPTRAN-PR.

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