Divergência jurisprudencial: inversão do ônus da prova e o ônus de antecipar o pagamento dos honorários periciais

1. Introdução

A jurisprudência dos tribunais brasileiros tem se mostrado divergente quanto à questão de inverter ou não o ônus de antecipar os honorários periciais, quando da aplicação do artigo 6.o, inciso VIII, do CDC.

Pelo CPC, o problema é facilmente resolvido pela análise conjunta dos artigos 19, 33 e 333. Por esta última regra jurídica, impõe-se ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito e ao réu, a dos fatos negativos (impeditivos, modificativos ou extintivos) do direito do autor. Sendo assim, com base nos dois outros dispositivos legais, se o autor requerer a prova pericial, salvo se beneficiário da justiça gratuita (art. 3.º, inc. V, Lei 1.060/50), incumbe-lhe antecipar os honorários periciais e, caso o réu pretenda produzir a prova técnica, deve depositar as respectivas despesas.

Já no CDC as regras processuais tradicionais sofrem algumas alterações. Primeiro, admite-se a inversão do ônus da prova, quando, a critério do juiz, o consumidor se mostra hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência (art. 6.º, inc. VIII). Segundo, tratando-se de ação coletiva, vale dizer, daquelas demandas que tem por objeto direitos transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), não há o adiantamento das despesas processuais, expressão ampla na qual se incluem os honorários periciais (art. 87).

O CDC, todavia, não disciplina expressamente a antecipação das despesas processuais quando, em decorrência de relação de consumo, discutem-se direitos individuais do consumidor. Eis o núcleo da divergência: aplica-se subsidiariamente ou não as regras do CPC?

2. Aplicação subsidiária da legislação interna ordinária ao microssistema consumerista

A intenção da Lei 8.078/78, ao disciplinar os artigos 5.º, inc. XXXII, e 170, inc. V, da CF, foi estabelecer regras atinentes à proteção e à defesa do consumidor. É considerado um microssistema jurídico, o que significa dizer que pretendeu regulamentar as relações de consumo, de modo a trazê-las normas específicas, em detrimento daquelas gerais encontradas nos Códigos Civil, de Processo Civil, Comercial etc. Com isso, todavia, não procurou criar um conjunto de regras tão minucioso a ponto de ignorar os outros diplomas legislativos. Tanto isto é verdade que o artigo 7.º do CDC contempla instrumentos de colmatação de lacunas (princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade) e admite a aplicação subsidiária de outras fontes normativas. Porém, estas normas somente serão aplicáveis ao microssistema consumerista naquilo em que não haja incompatibilidade.

3. Confrontação das teses divergentes

A pergunta formulada é, como foi desde o início anunciado, respondida de dois modos: uma corrente jurisprudencial recorre à aplicação subsidiária do CPC, para determinar que o consumidor, mesmo beneficiado pela inversão do ônus da prova, antecipe os honorários do perito e, por outro lado, a outra corrente afirma que tal aplicação é incompatível com o CDC.

3.1. Contextualizando o CDC

As modificações socioeconômicas e os avanços tecnológicos ocasionaram várias mudanças em concepções jurídicas arraigadas na tradição liberal. Na sociedade contemporânea, com a produção e o consumo intensificados, não havia mais espaço para os clássicos princípios da autonomia das vontades e da liberdade contratual, que, paulatinamente, foram ruídos pelo fenômeno da massificação contratual, sentido em vários setores e manifestado pela explosão dos contratos de adesão, marcados por cláusulas padronizadas estabelecidas por apenas umas das partes (o fornecedor), sem a possibilidade de participação da outra (o consumidor).

A concepção liberal da plena autonomia da vontade teve que ser substituída por uma autonomia de vontades delimitada por normas jurídicas de ordem pública e de interesse social (fenômeno conhecido como a publicização do privado), sob pena de se cristalizar o princípio da igualdade formal, sempre mais vantajoso aos detentores do capital e dos meios de produção, em prejuízo da grande massa de consumidores. Simultaneamente, foi dado ao consensualismo um sentido diverso, de liberdade responsável, para a celebração de negócios jurídicos que, ao mesmo tempo, assegurassem a necessária estabilidade, inerente à segurança jurídica, e previssem meios de equilibrar a relação jurídica, para que o consumidor, parte mais vulnerável (art. 4.º, inc. I, CDC), não fosse alvo de injustos artifícios, próprios ao capitalismo sem limites.

Com efeito, a Lei 8.078/90 se destaca, por introduzir uma legislação protetiva do consumidor, instaurando um regime jurídico que afasta o princípio da igualdade formal e abstrata entre as pessoas, além de ter por objetivo a transparência das relações jurídicas, mediante o efetivo equilíbrio da equação jurídico-econômica da relação de consumo.

3.2. A técnica da inversão do ônus da prova

A técnica da inversão do ônus da prova deve ser compreendida nesse contexto. É um direito básico do consumidor, já que previsto no artigo 6.o, inciso VIII, do CDC, cujo escopo fundamental é facilitar a defesa dos seus direitos em juízo. Trata-se, pois, de um mecanismo indispensável à promoção da igualdade real e concreta do consumidor. Afinal, sendo a prova o elemento de argumentação mais importante do processo, atribuir ao consumidor, considerado sempre a parte mais vulnerável na relação de consumo, a necessidade de demonstrar fatos, de grande complexidade técnica ou de alto custo econômico, seria um desestímulo ao acesso à justiça, sendo fator de manutenção das injustiças praticadas pelas leis do mercado mais favoráveis ao fornecedor.

Sendo um instrumento de facilitação da defesa dos direitos em juízo, a inversão do ônus da prova promove o princípio da isonomia, em sentido material, passando a ver o consumidor como um homem de carne e osso, que, diante das regras do mercado, tem sérias dificuldades de fazer valer os seus direitos. É verdade, porém, que tal mecanismo não está assentado na vulnerabilidade do consumidor, mas na sua hipossuficiência, o que significa perceber que a técnica da inversão do ônus da prova não é automática, mas está sujeita a um juízo de valor a ser feito pelo magistrado, em todo caso concreto, ponderando as circunstâncias relativas à verossimilhança da alegação e da pessoa do demandante-consumidor. Em outras palavras, se a vulnerabilidade é uma presunção absoluta, a hipossuficiência, se existente, segundo as regras ordinárias de experiência, gera uma presunção relativa, o que importa, tão-somente, na inversão do ônus da prova, não no prejulgamento da questão invertida em favor do consumidor. Portanto, o que o juiz deve se perguntar, para inverter o ônus da prova, com base na alegação de hipossufiência, é: se é mais fácil para o fornecedor ou para o consumidor produzir a prova: caso, em razão da dificuldade técnica e/ou econômica deste, não houver a inversão, haverá violação do princípio da isonomia e, em contrapartida, se essas dificuldades não se apresentarem, no caso concreto, faltará para tal inversão lógico e justo critério de discriminação, o que representará a própria violação do princípio da igualdade, o qual é, pois, o verdadeiro fundamento do artigo 6.º, inciso VIII, do CDC. Exemplificando: seria um contra-senso exigir que o consumidor que comprasse um automóvel novo tivesse que demonstrar que o problema apresentado (v.g., superaquecimento do motor) não é um defeito de fábrica, mas uma decorrência do mau-uso do veículo, após justificativa da concessionária negando pedido de conserto, sob a alegação do vício não estar coberto pela garantia, uma vez que é o fornecedor quem tem melhores condições técnicas de produzir a prova. Por outro lado, não haveria hipossufissiência, se um expert em mecânica de motores de veículos comprasse um automóvel usado de uma loja qualquer de carros (revenda não autorizada) e, em posterior ação judicial, alegasse vício ou defeito oculto, como fundamento para redibir (anular) o contrato de compra e venda e obter o ressarcimento das perdas e danos.

3.3. Inversão do ônus da prova e inversão do ônus do pagamento antecipado das despesas processuais

A corrente jurisprudencial que entende que, mesmo com a inversão do ônus da prova, o consumidor deve antecipar as despesas processuais (qual seja, os honorários periciais) prejudica a parte mais fraca da relação jurídica processual (hipossuficiente). A aplicação subsidiária dos artigos 19 e 33 do CPC cria mais dificuldade à defesa dos seus direitos em juízo, contrariando, pois, o artigo 6.º, inciso VIII, do CDC, o qual visa, justamente, promover o princípio da isonomia, em sentido real ou concreto. Por isso, essa exegese viola não somente tal regra jurídica, bem como a contida no artigo 7.º da Lei 8.078/90, a qual, conforme já salientado, admite apenas a aplicação subsidiária da legislação ordinária interna compatível com os direitos do consumidor.

A tese contemplada por essa parcela da jurisprudência impõe, pois, um sério óbice ao acesso à justiça, negando o princípio da igualdade em sentido material e fazendo uma leitura anacrônica (liberal) de um diploma legislativo moldado pela ideologia do Estado Social de Direito. Conforme bem explica Mauro Cappelletti e Bryan Garth, a “justiça, como outros bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva”.

Assegurar a inversão do ônus da prova ao consumidor sem inverter, também, o ônus de adiantar as despesas processuais é o mesmo que garantir um direito apenas formal ao litigante reconhecidamente hipossuficiente na relação jurídica processual, na medida em que ainda persiste a dificuldade econômica que, aliás, é um dos pressupostos para a aplicação do artigo 6.o, inciso VIII, do CDC.

Logo, quando se inverte o ônus da prova, transferem-se ao fornecedor todos os riscos, custos e responsabilidades quanto à atividade probatória. O entendimento contrário, ao perpetuar a dificuldade econômica, não facilita a defesa dos direitos do consumidor em juízo, mantendo o status quo anterior. Mantido o raciocínio, que se combate, muitos consumidores, mesmo que reconhecidamente hipossuficientes, desistirão da prova pericial, em razão do seu custo elevado, o que resultará na total ineficácia e descrédito do instituto da inversão do ônus da prova, fazendo-se perder um valioso instrumento de efetivação da justiça.

Ademais, afirmar que não deve haver distinção entre a inversão do ônus da prova e do ônus de antecipar as despesas processuais não implica considerar o consumidor isento desses encargos. Afinal, tendo o fornecedor, pela realização da prova, convencido o juiz de que tem razão, ficará o consumidor submetido ao pagamento dos ônus da sucumbência. Dessa maneira, a inversão do ônus do adiantamento das despesas somente contribuirá para com a justiça da decisão, pois o fornecedor se esforçará para demonstrar que tem razão até para, com isso, reaver aquilo que pagou para poder desincumbir-se do onus probandi invertido. Com efeito, merecendo a tutela jurisdicional, não sofrerá nenhum prejuízo econômico.

Ainda, parece-nos equivocado tratar o artigo 6.o, inciso VIII, do CDC como mera regra de juízo (isto é, como critério de julgamento que o juiz somente leva em consideração, ao sentenciar, quando está em dúvida a respeito da suficiência do desincumbimento dos ônus probatórios pelas partes) para dizer que a inversão do ônus da prova é um mecanismo autônomo, o qual não guarda relação com o ônus de antecipação das despesas processuais. Afinal, as normas de repartição do ônus da prova não são somente regras de julgamento, mas também regras de comportamento dirigidas às partes, tendo a finalidade de indicar, de antemão, quais os fatos que cada um dos litigantes deve provar. Se a inversão do ônus da prova for conhecida somente na sentença, será um fator que causará surpresas, na medida em que não se assegurará ao fornecedor o exercício satisfatório de seu direito à prova contrária, resultando na violação das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5.º, inc. LV, CF). Além disso, contraria o princípio da boa-fé utilizar a regra do artigo 6.º, inciso VIII, do CDC para facilitar a defesa dos direitos do consumidor, às custas do sacrifício do direito de defesa do fornecedor.

Por fim, a redação do artigo 6.º, inciso VIII, do CDC, ao valer-se da expressão “inclusive”, quer dizer que a inversão do ônus da prova é apenas um dos modos (exemplificativos) de facilitação do direito de defesa do consumidor, podendo o juiz, quando for necessário para atingir esta finalidade, adotar outras providências, mesmo que não previstas expressamente na Lei 8.078/90.

4. Modos de solucionar a divergência jurisprudencial

A divergência jurisprudencial há de ser sanada, sob pena de gerar o problema kafkaniano da jurisprudência lotérica, que consiste na possibilidade da mesma questão jurídica ter soluções diferentes, bastando que sejam julgadas por dois órgãos judiciais com convencimentos distintos.

A uniformização da questão de direito controvertida encontra, em nosso ordenamento processual dois modos de concretizar-se: i) tratando-se de órgãos do mesmo tribunal, a jurisprudência pode ser unificada pelo mecanismo previsto nos artigos 476-9 do CPC (incidente de uniformização da jurisprudência) ou, se a divergência resultar de decisão de duas Turmas, em recurso especial ou extraordinário, é cabível os embargos de divergência (art. 546/CPC); ii) cuidando-se de tribunais diferentes, a solução é a interposição de recurso especial, com fundamento no artigo 105, inciso III, letra “c”, da CF.

5. Conclusão

Em conclusão, há de prevalecer a corrente jurisprudencial que entende que, com a inversão do ônus da prova, inverte-se, também, o ônus do pagamento antecipado das despesas processuais (vale <%2>dizer, dos honorários periciais), pois ela está mais de acordo com o espírito do CDC, voltado à concretização do princípio da igualdade real. Vem de encontro à tentativa do legislador de facilitar o exercício da defesa do consumidor hipossuficiente além de ser a mais justa por, ao invés de criar obstáculos, ampliar o acesso à justiça, dando maiores chances para que a parte mais fraca da relação jurídica processual obtenha a tutela jurisdicional.

Também evita que o consumidor-demandante se veja compelido a buscar auxílio da assistência judiciária gratuita, a qual, em tese, abarca a isenção integral da despesa com a prova pericial (exegese do art. 3.o, inc. V, da Lei 1.060/50), mas, na prática, a sua realização encontra, em alguns Estados, sérias dificuldades financeiras, a recomendar a existência de verbas orçamentárias próprias, sob pe<%2>na de ter que se contar ou com a disposição da parte desobrigada, ou com a altruística colaboração do perito ou, ainda, com o oportuno pagamento do precatório.

Por outro lado, esse entendimento, versando a causa sobre direitos individuais, não gera prejuízos ao fornecedor que, tendo razão, é reembolsado das despesas pagas (ônus da sucumbência)(23).

Ademais, evita-se que o artigo 6.o, inciso VIII, do CDC, seja visto como uma mera regra de julgamento, tornando-se um mecanismo arbitrário, na medida em que viola as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, prejudicando, demasiadamente, o fornecedor.

Portanto, não se pode dissociar a inversão do ônus da prova da inversão do pagamento adiantado das despesas processuais, sob pena de tornar inócuo o sistema protetivo criado pela Lei 8.078/90, perpetuando a aplicação de regras anteriores à sua vigência que não podem ser aplicadas subsidiariamente, porque já se mostraram inadequadas e ineficientes para a tu<%0>tela dos direitos do consumidor.

Eduardo Cambi

é mestre e doutor em Direito pela UFPR, professor de Direito Processual Civil da PUCPR e do curso de mestrado da Faculdade de Direito do Norte Pioneiro. Assessor jurídico do TJ/PR.

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