Direitos reais no novo Código Civil (I)

Gostaria de, num lapso de tempo, procurar dividir as anotações que preparei para refletir sobre este tema em três momentos distintos. O primeiro deles, consta que a contextualização de todos os livros que integram o novo Código Civil, para compreender que cada um desses livros é de fato fundamental. Vale dizer, não se compreende uma casa omitindo uma de suas seções ou departamentos. Compreende-se uma examinando o conjunto de princípios e regras que se dispõe a governar: a arquitetura, o desenho interno, a estrutura daquela dimensão que se apresenta como um conjunto sistemático de regras e princípios. Então em um primeiro momento, vamos procurar também contextualizar a temática dos direitos reais na ambiência do código, o código na ambiência do sistema jurídico atual, e o sistema jurídico brasileiro atual no despertar do século XXI, para sabermos quais são os desafios que estão a arrostar a criatividade, a imaginação, a operatividade e mesmo a inventividade que dentro de um sistema jurídico aberto, poroso e plural sempre tem lugar.

Num segundo momento, feita esta introdução, iremos pontuar sete aspectos que nos parecem relevantes em matéria de alterações que o novo código propõe na temática dos direitos reais, e outros sete que suscitam a manutenção daquilo que vinha do código de 16 e que permanece na codificação de 2002. E, por derradeiro, vamos agregar a isso uma expressão que recebeu esta minutente e bem posta análise da professora Judite: a expressão da função social, a temática, também dos direitos reais. Indicando para uma perspectiva que desde saída deixamos, desde logo portanto, deixamos especificada, qual seja de que a eminência da vigência da nova codificação parece-nos que traduz para todos nós não apenas para aqueles que são destinatários especiais da codificação, mas para a população de um modo geral. É claro que para os operadores de Direito, de um modo especial, traduz uma tarefa que temos designado de uma hermenêutica construtiva. Estamos entre aqueles que entendem que na verdade uma codificação se faz codificação. Uma codificação não nasce codificação, ela se faz na densidade concreta, na realização de seus princípios, na apuração de seus sentidos e que por isso mesmo não é unívoca, não é perene e pode ser continuada, construída e reconstruída à luz dos valores sociais e históricos que num dado momento da sociedade nos permite fotografar uma determinada sociedade, um determinado Estado.

Iniciando, portanto, pelo começo, vale dizer por esta inserção histórica e contextualizada, permito-me registrar que num recente trabalho o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao referir-se à vigência do novo código escreveu o seguinte: “Estamos a ingressar numa nova etapa do direito privado brasileiro, com novas regras e correção de algumas carências acumuladas ao longo de muito tempo. Com a renovação de conceitos e princípios e a esperança de dias melhores, nos quais tenham maior proteção os direitos do cidadão e da pessoa humana”. Estamos totalmente de acordo com essa perspectiva, porque toda a reforma, toda a codificação que se apresente como nova há de responder, fundamentalmente, para que e para quem esse diploma legislativo se apresenta, numa sociedade do início do século XXI. Ora, não há de se ir muito longe, e acabamos de ouvir, como já se disse nas lições da professora Judite, que no plano de contratos já não são mais os mesmos conceitos. Quem contrata hoje não contrata apenas com quem contrata. Portanto há uma mudança subjetiva, quem contrata hoje não contrata mais o que contrata, porque há uma mudança objetiva.

Essa mesma idéia também se faz presente nos direitos reais. Eis que, na verdade, os direitos reais estão na base dos três pilares fundamentais da nossa sociedade. Como escreveu Jean Carbonet na sua sociologia algumas décadas atrás, três são os pilares fundamentais de uma sociedade. Em primeiro lugar ele designou o trânsito jurídico, onde estão os contratos, as obrigações e os negócios jurídicos de um modo geral. Em segundo lugar está o projeto parental, a família e suas múltiplas possibilidades de apreensão do desenho jurídico do afeto sem um modelo predeterminado que compreenda a família matrimonalizada, monoparental e assim por diante. E um terceiro e último pilar, e é este que nos interessa em especial, hoje, que é o pilar das titularidades. Vale dizer, do conjunto de direitos, bens e coisas, da chamada esfera jurídica patrimonial do sujeito, que é a figura do sujeito natural, que é considerado coletivamente nas pessoas jurídicas. Essa esfera jurídica patrimonial que compreende a propriedade, a posse, a empresa. Então, esse é o tripé que nos permite, portanto, radiografar as citações subjetivas, objetivas, patrimoniais, não-patrimoniais que de algum modo traduzem para o direito o seu desafio de compreender a realidade, não apenas de reproduzi-la, mas também de transformá-la. Nessa perspectiva, portanto, que é uma perspectiva de contextualização, o desafio da nossa nova codificação está em responder à simples pergunta de saber para onde migramos. Nós, do código 16 até a Constituição de 1988, e para onde migraremos nós agora, à luz da nova codificação, tendo em vista as circunstâncias que governam na sociedade e no direito esses três pilares fundamentais. Afinal de contas, de que contrato se trata, para esta sociedade, este modelo econômico e social que estamos a vivenciar? De que família nós estamos a tratar diante da necessária interlocução que o direito precisa ter, especialmente o direito de família, com a sociologia, a psicologia e tantas outras ciências e saberes. E por derradeiro, e de que propriedade, especialmente a propriedade imobiliária, deve uma nova constituição tratar e que desafios deve responder para propriedade, para posse e para a empresa.

Isso significa, portanto, essa resposta há de nos ter com os pés no chão para estarmos atentos à realidade, mas também com a cabeça nas nuvens para imaginar que também é possível abastecer os conceitos que emergem dos fatos, e a partir desse abastecimento encontrar respostas novas aos problemas novos que o século XXI está a nos colocar. Nessa perspectiva, portanto, um código que se propõe a responder essas perguntas há de contar especialmente com a mediação subjetiva e declinável dos que operam com o direito.

Luís Edson Fachin

é diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

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