Direito Sucessório no Brasil

Doutrinadores ainda não conseguiram assimilar com segurança as mudanças do novo Código Civil.

Ainda quando alunos nos bancos da faculdade até a prática atual nos escritórios de advocacia, o advogado foi preparado para o exercício da profissão calcado em dois pilares fundamentais: doutrina e jurisprudência.

A doutrina, trazida pelos grandes professores, doutrinadores, especialistas em diferentes áreas do Direito, que em suas obras transmitem não apenas a informação e o esclarecimento, mas também marcam o registro de suas opiniões, nem sempre obrigatoriamente convergentes, mas cujo peso é proporcional ao reconhecimento que a comunidade jurídica lhes confere.

Como segundo pilar, a jurisprudência, formada pela uniformização dos julgados proferidos pelos nossos tribunais superiores, delineando os caminhos de nossa Justiça.

Embora emane da jurisprudência o que entendemos no jargão popular como a “palavra final” ou para os militantes da advocacia o “trânsito em julgado”, que decide de forma definitiva determinada situação, a verdade é que ao ser proferida uma decisão judicial, esta busca também na doutrina o fundamento para justificar e balizar suas decisões.

A jurisprudência representa a manifestação do Poder Judiciário e tem em sua parte dispositiva uma determinação que deverá ser obedecida pelas partes litigantes, sob as penas da Lei. É ato exclusivo e privativo do Estado. Mas é no que lhe precede, na fundamentação da sentença ou acórdão, que jurisprudência e doutrina se encontram como um só todo.

A doutrina não serve apenas como ferramenta de trabalho dos advogados, mas também auxilia os magistrados, que nela buscam uma sustentação a mais para seu julgamento. E assim, cada qual no seu papel, advogados e magistrados têm na doutrina e jurisprudência os pilares principais, entre outros, que auxiliam no cumprimento de suas funções. Os primeiros na defesa dos interesses de seus clientes, os segundos no papel constitucional de julgadores.

A partir de 11 de janeiro de 2003 terá início uma nova etapa no Direito brasileiro, com a entrada em vigor do novo Código Civil, conforme Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002. A menos de dois meses de seu início, o que se encontra nas livrarias especializadas são os “códigos confrontados”, ou seja, os textos comparativos do Código Civil atual e de seu sucessor, anotando e indicando suas diferenças, acréscimos e supressões.

Mas nossos doutrinadores ainda não fizeram chegar seus comentários e explicações conceituais sobre as profundas mudanças inseridas no novo texto. Não faltam cursos, promovidos por órgãos de classe ou faculdades, onde revemos nossos professores buscando destrinchar, explicar e, por vezes, criticar, o novo texto legal.

Mas as preleções são precedidas sempre de “acho que….” ou “me parece que …” ou, ainda, “poderá ser que …”. Em resumo, e isto não se entenda como crítica, mas como uma conseqüência natural decorrente das mudanças introduzidas, os doutrinadores ainda não conseguiram assimilar e ordenar com segurança a interpretação das modificações do novo Código Civil.

Por um razoável espaço de tempo teremos uma doutrina mais diluída, até que se formem correntes doutrinárias majoritárias. Se para a doutrina isto é uma necessidade, para a jurisprudência será uma realidade. Até que os primeiros litígios cheguem às instâncias superiores, um tempo muito maior se fará necessário. Assim, os dois pilares aos quais inicialmente nos referimos, precisam ser remodelados e atualizados, conforme cada caso concreto.

Embora em vigor apenas a partir do início do próximo ano, as consultas recebidas pelos advogados que militam na área de sucessão a partir deste segundo semestre de 2002 já evocavam a necessidade de uma orientação pelo novo Código Civil. Reconheça-se que nem tudo foi alterado, mas daquilo que se modificou os reflexos são enormes no campo do Direito das Sucessões.

Neste sentido, os advogados estão na linha de frente e devem estar preparados para um atendimento correto aos seus clientes. Mais à frente, com os inevitáveis conflitos que a vida impõem, os Tribunais serão chamados para sua manifestação e com o passar dos anos a jurisprudência será novamente formada, com suas naturais correntes majoritárias e minoritárias.

Para o profissional do Direito será uma oportunidade única acompanhar passo a passo a construção da jurisprudência do novo Código Civil. Mas não se diga isso ao cliente que nos consulta, que não pretende fazer parte de um “laboratório de experiências jurídicas” onde casos concretos que afetam sua vida pessoal sejam objeto de demandas judiciais sem bases doutrinárias e jurisprudenciais seguras. Em parte, e tal fato ocorre no curso de qualquer processo inovador, isto será uma verdade.

No Direito das Sucessões nos parece relevante destacar a modificação da ordem da vocação hereditária. Ao contrário de alterações que já vem ocorrendo no Código de Processo Civil, mais ligadas ao tecnicismo do processo judicial, o novo Código Civil modificou um conceito arraigado na Sociedade brasileira, que não se limita apenas aos que convivem no meio jurídico.

Ao incluir o cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário (artigo 1.829 do novo Código Civil, em substituição ao artigo 1.603 do atual), a lei impõe a modificação imediata de um conceito social e cultural traduzido no dito popular “esposa (ou marido) não é parente”. A partir de 11 de janeiro de 2003 esta frase fará parte do passado!

Qualquer que fosse o contexto em que tenha se originado, a sabedoria popular, sem conhecer doutrinadores ou aprofundar-se na jurisprudência, traduzia neste jargão popular a conceituação do Código Civil de 1916. Pois, realmente, herdeiros necessários eram apenas os descendentes e, na falta destes, os ascendentes. O direito patrimonial do cônjuge sobrevivente lhe era conferido pelo regime de casamento eleito e sua denominação técnica lhe conferia a qualificação de meeiro (a).

A redação trazida pelo mencionado artigo 1.829 do novo Código Civil é precisa ao afirmar que na sucessão legitima será destinada a herança “aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente”. Sem adentrar nas minúcias do inciso primeiro, nos limitemos a analisar brevemente a escolha do legislador pelo termo “concorrência”. Novamente voltando às definições populares, a palavra evoca ao leigo uma noção de competição ou disputa.

Se traduzida para o vernáculo jurídico, nos parece que manterá o mesmo sentido, porque efetivamente os filhos, na parte legítima, estarão concorrendo com o cônjuge sobrevivente, observadas as condições complementares do próprio inciso. O mesmo se observa no inciso seguinte, quando o cônjuge sobrevivente, na falta de descendentes, concorrerá com os ascendentes do falecido e, na falta de ambos, será integralmente deste a parte legítima da herança.

Para os casados pelo regime da separação total de bens antes da Lei n.º 6.515/77 ou, na sua vigência, tendo eleito esta modalidade por pacto antenupcial, o novo ordenamento jurídico romperá por completo, para fins de sucessão, a estrutura patrimonial atual. Obviamente que a introdução desta nova regra em benefício do cônjuge sobrevivente não pode ser analisada de maneira isolada, devendo ser observada a disposição do artigo 1.830 do novo Código Civil ao determinar que “somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.

Importante destacar, ainda, a introdução do artigo 1.832 do novo Código Civil garantindo ao cônjuge sobrevivente com filhos comuns ao falecido uma parcela da legítima idêntica àquela reservada para estes, mas jamais inferior a uma quarta parte da herança. Sendo a legítima representada por 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio do falecido, conclui-se que ao cônjuge sobrevivente, observadas as regras acima, ficará assegurada uma parcela não inferior a 12,5% (doze e meio por cento) do patrimônio total do falecido.

Por conseqüência, é forçoso reconhecer que o novo Código Civil interferiu sem pedir licença na livre escolha de um casal quanto a divisão de seu patrimônio na abertura da sucessão de qualquer um deles. Não se está discutindo neste artigo se a modificação é justa, mas cumpre registrar que a modificação do status patrimonial foi modificado a revelia das partes interessadas.

Com base no Princípio da Anterioridade, onde uma lei não pode modificar direitos já existentes, propugnou-se que a nova ordem da vocação hereditária aplicar-se-ia apenas aos casos de sucessão decorrentes dos casamentos contraídos na vigência do novo texto legal, ou seja, a partir de 11 de janeiro de 2003. Ledo engano, todavia.

O artigo 2.041 das disposições transitórias do novo Código Civil é taxativo ao afirmar que “as disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior”.

Em outras palavras, o que rege o Direito das Sucessões é a abertura da sucessão (artigo 1.572 do texto atual e artigo 1.784 do novo Código Civil). Assim, a aplicação das regras do novo Código Civil não se vincula a data de matrimônio, mas a do falecimento de um dos cônjuges.

Portanto, mesmo se casados pelo regime da separação total de bens antes ou durante a vigência da Lei n.º 6.515/77, certo é que aberta a sucessão após 11 de janeiro de 2003 o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da separação total de bens terá direito a, observadas as normas dispostas no novo Código Civil, intitular-se herdeiro necessário e “concorrer” com descendentes ou ascendentes, possibilidade esta que até a promulgação da Lei n.º 10.406/02 era absolutamente impensável.

A letra fria do texto legal não será suficiente, como não era no texto atual, para dirimir todas as dúvidas que surgirão. Será da doutrina o primeiro fardo na busca da correta interpretação deste novo direito conferido ao cônjuge sobrevivente e da jurisprudência o ônus de normatizar sua interpretação.

Neste meio-tempo, caberá aos profissionais do Direito exercer na plenitude o que nos bancos de Faculdade não se ensina, mas que o exercício profissional e a boa ética recomendam, também traduzidos em outro dito popular: “Três coisas são saudáveis em pequenas quantidades e prejudiciais em excesso: sal, fermento e hesitação”.

Luiz Kignel

é advogado, atua na área sucessória e mobiliária em São Paulo-SP.

Voltar ao topo