Direito de crítica jornalística: o caso especial da sátira e da caricatura

Ao abrigo da liberdade de expressão estão o direito de crítica e o jornalismo de opinião, aqui entendidos sinteticamente como o direito ao exame valorativo dos fatos e situações. O caráter lícito dessas atividades, quando ocasionam uma ofensa aos direitos de personalidade, resulta não apenas da legitimidade e honestidade em que se profere uma crítica ou uma opinião, no sentido da boa-fé do emissor, mesmo que de forma agressiva, como também da correlação entre os fins lícitos do agente e a adequação dos meios utilizados. Inversamente, a ausência da idéia de persecução de interesses legítimos, direitos de outrem a salvaguardar, dever de informação e investigação, fim do agente, necessidade, proporcionalidade e idoneidade, etc., no regime de exclusão de ilicitude de uma ofensa aos direitos da personalidade tornaria toda e qualquer imputação ou intromissão ilegítima, amputando a liberdade de expressão e informação da imprensa.

A informação jornalística se decompõe na notícia e na crítica, esta intimamente ligada àquela, por ter como objeto o fato noticiado. Mas, em função da possibilidade da diferenciação entre uma notícia e uma crítica engendrar diferentes conseqüências jurídicas relativamente à responsabilidade do jornalista, é importante que sejam assim claramente distinguidas, ainda que isto, na prática, se mostre bastante difícil, se não mesmo em muitos casos impossível, ?uma vez que toda a comunicação sobre fatos pressupõe um juízo valorativo sobre a fonte de informação e uma seleção do que é relevante, os quais podem influenciar a opinião do público destinatário?(1). Nestes termos, pode a notícia vir mesclada com a crítica jornalística, o que se deve evitar, ou pode se apresentar distintamente do relato dos fatos, como convém, ou seja, primeiro narrando-se os fatos, depois apresentando uma posição pessoal relativamente a eles. Desta forma, poder-se-ia avaliar com mais acuidade uma ofensa ilícita a um (ou mais) dos direitos da personalidade e a intensidade da lesão.

Neste domínio, impende notar que a crítica jornalística não se reveste necessariamente de sentido pejorativo ou depreciativo. Ao contrário, por vezes constitui um juízo favorável sobre o objeto de análise.

Convém, no entanto, diferenciar as situações em que a crítica jornalística tem por objeto, por exemplo, uma obra literária, artística, etc., em que o autor oferece seu trabalho à consideração do público, com a conseqüente ampliação do direito de crítica do jornalista, daquelas situações em que o objeto da crítica é um fato acontecido qualquer. Neste caso, a emissão de opiniões ofensivas tem menor amparo legal, pela maior ênfase dada aos direito de personalidade relativamente ao caso anterior. É óbvio, no entanto, que a crítica deve circunscrever-se ao seu trabalho artístico e aos aspectos pessoais relacionados a ela, fora do que presente está a ilicitude, pois se desvia de um julgamento objetivo da arte, e mesmo dos fatos, para ingressar no campo da ofensa pessoal, do ataque injustificado e despropositado à honra.

Diferentemente é, outrossim, o caso da sátira e da caricatura, cuja essência de criação artística e literária ?reside precisamente na exploração, sem limites, do grotesco, do ridículo, em suma, daquilo que, a qualquer luz, sobressai em determinada expressão da realidade?. E que se traduz ?numa particularmente alargada e reforçada (mesmo em confronto com outros direitos fundamentais como a liberdade de expressão) e reflexamente num rechtlicher freiraum com amplitude verdadeiramente única?(2).

Observa-se, hodiernamente, uma tendencial dissolução do conceito de arte, cada vez mais fora do alcance de categorias como o lícito ou ilícito e escapa cada vez mais às malhas dos ordenamentos normativos. Em verdade, a sátira e a caricatura, formas específicas de criação artística e literária, têm um tratamento privilegiado mesmo em relação à liberdade de expressão.

É a partir daqui que as dificuldades se avolumam, pois se uma corrente doutrinária pronuncia-se a favor da expressão artística como um elemento de justificação de ilicitude, e outra corrente, a que se subscrevem a maioria dos autores, consideram-na verdadeiros casos de atipicidade, não será de ignorar o fato de não remanescerem eventuais violações aos direitos pessoais de outrem. Nelson Hungria anota que ?não é admissível que, por amor a pillhéria, se tolere que alguém se divirta ou faça divertir à custa da reputação ou decôro alheio. Uma coisa é gracejar, outra é ridicularizar. Neste último caso, o dolo subsiste. O ridículo é uma arma terrível. Uma piada malévola pode destruir toda uma reputação. Além disso, não é de confundir-se o animus jocandi com o objetivo de humor a serviço da maledicência. O ânimo de ofender não se torna irreconhecível quando afivela a máscara da chocarrice?(3).

Primeiramente, para efeitos da apuração da ofensa ilícita, há que se pressupor a distinção conceitual entre mensagem (?Aussagekern, o significado objetivo transmitido?) e a roupagem (?Einkleindung, a forma literal ou plástica imprimida pelo autor?) destas criações artísticas. O normal é a caracterização do ilícito em função da mensagem lesiva da honra ou intimidade, mas, a própria roupagem pode merecer reposta penal e civil, em casos extremados, já que a sua atipicidade, em princípio, ?decorre da própria natureza do veículo, que trabalha com a deformação e a hipérbole?(4).

A roupagem que confere o status artístico à sátira e à caricatura, se apresentado dentro da normalidade, não expuser a pessoa a um ridículo demasiado e ter como pano de fundo um fato verdadeiro, ganha ares de regularidade, ainda que ofenda os direitos de personalidade. No caso de eventual colisão deve levar-se em conta o custo social a suportar em nome da liberdade de criação artística. Também o direito à imagem não pode ser invocado na hipótese de não autorização de sua veiculação. Isto porque não teria sentido exigir que o lesado autorize a sua imagem caricaturizada, por tornar inviável o exercício desta especial liberdade de expressão artística e o direito de crítica jornalística.

Importante lembrar que a crítica jornalística deve ter caráter exclusivamente narrativo conclusivo dos acontecimentos, não devendo, contudo, descambar para o terreno do ataque pessoal ao indivíduo, quando irá se revestir de ilicitude. Nada obsta que a imprensa emita opiniões, juízos de valor, com a finalidade de informar a coletividade, chamar a atenção do público para determinado fato, para que uma situação seja pensada e quiçá solucionada, aliás, é este, o papel fundamental da imprensa na sociedade -, mas a busca do sensacionalismo desenfreado e onipresente no cotidiano da prática jornalística hodierna, tem evidenciado uma sequiosa depreciação dos direitos de personalidade pelos órgãos comunicacionais. A questão deve ser repensada, nomeadamente no que respeita ao fortalecimento dos valores éticos e deontológicos que impendem sobre a matéria.

Por derradeiro, cumpre ressaltar que a consideração de que o animus criticandi exclui o animus injuriandi pode muito bem resolver a questão no terreno da doutrina, mas, na prática não é tão simples de se estabelecer quando começa o deslizamento da crítica lícita ao excesso punível. Aos tribunais judiciais competem decidir caso a caso, e somente estes poderão dizer se o exercício da liberdade de expressão e informação ultrapassou a licitude e entrou no campo dos comportamentos penalmente típicos ou no campo da ilicitude civil.

Notas:

(1)     Jónatas Machado, Liberdade de expressão, dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 479.

(2)     Costa Andrade, Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal. Uma perspectiva jurídico-criminal. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, pp. 241 e 143, respectivamente.

(3)    Apud Enéas Costa Garcia, Responsabilidade civil dos meios de comunicação social. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 211.  

(4)     Jayme W. Neto, Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação penal, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 172.

Ana Marina Nicolodi é mestre pela Universidade de Coimbra-Portugal, professora de Direito Civil e Empresarial na Faculdade Unibrasil. marinanicolodi@hotmail.com, marina@robsonzanetti.com.br

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