Desvincular seria crime

É muito importante que o presidente Lula tome nota do que está dizendo o economista José Pastore, em contraposição ao que defende um de seus principais conselheiros – o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. Enquanto este, ainda convalescendo do Waldogate, defende a desvinculação do salário mínimo dos benefícios pagos pela Previdência Social, aquele avisa que nada seria mais truculento que a infeliz e nada original medida sugerida. Seria matar os aposentados de salário mínimo para não atrapalhar as contas públicas.

Se a Previdência depende de quem contribui, o grande rombo não está no descontrole gerado por um salário mínimo maior e, sim, pela falência do sistema que é decretada pela informalidade que nada paga. Em outras palavras, pelos desempregados da República que aguardam o cumprimento de uma promessa de dez milhões de novos empregos. Estima-se que 48 milhões de pessoas estejam sobrevivendo diariamente no mercado informal de trabalho. Isto, segundo Pastore, significa que sessenta por cento dos brasileiros que trabalham nada pagam aos cofres do INSS.

Os argumentos do economista são convincentes. Em recente artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Pastore critica tanto os que se enfileiram atrás dos argumentos do presidente Lula, para quem dar mais que R$ 20 seria irresponsabilidade, quanto nos que imaginam a desvinculação como uma espécie de ovo de Colombo, permitindo o cumprimento da promessa da dobra do valor do mínimo, mas arrochando para muito além do suportável a vida dos aposentados. “Se os beneficiários da Previdência Social têm que viver hoje em dia com menos de US$ 1,50 por dia, o que deseja essa gente que almeja a referida desvinculação?”, pergunta o economista.

Para enfrentar o problema com o realismo necessário seria preciso que políticos e governantes tivessem coragem de colocar o dedo onde está, realmente, a ferida – essa avalanche de pessoas mergulhada no diário milagre da informalidade que, a despeito de nada pagarem para a Previdência, gozam de benefícios universais (não esquecer que, na outra ponta, existem os que, com múltiplas e milionárias aposentadorias, gozam de privilégios universais “irrevogáveis” e “irrenunciáveis”). E para enfrentar o problema da informalidade é preciso operar, segundo Pastore, “mudanças amplas – e não tópicas – na legislação trabalhista e previdenciária”.

Infelizmente a reforma trabalhista foi deixada de lado (em parte pela obstrução sistemática então operada pelo PT) durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, da mesma forma que vem sendo protelada pelo PT, agora no governo. E nossa gigantesca informalidade é produzida mais pelo arcabouço de leis injustas e hipócritas, que garantem direitos, mas não imaginam de onde podem esses direitos ser alimentados, que pelas sempre múltiplas oportunidades oferecidas pelo enorme mercado brasileiro. A imensa e freqüentemente injusta carga tributária, o peso dos encargos sociais sobre os salários formais, que chega a ser maior que o próprio salário, o arrocho no Imposto de Renda, o custo da burocracia (que gera uma não menos custosa margem de corrupção), tudo isso está empurrando o brasileiro para uma realidade que nada tem a ver com a legislação que, não raro, orgulha uns e outros por ser “de primeiro mundo”. Mas que primeiro mundo é esse que vegeta num salário mínimo de fome e sem perspectivas de melhora, exceto se for desvinculado… exatamente de quem passa fome?

Ainda bem que as reações à proposta de José Dirceu não foram as melhores nem mesmo dentro do partido que ele ainda imagina indiretamente presidir. O senador Paulo Paim, que se notabilizou pela sua luta intransigente em defesa de um salário mínimo maior, acha que o malsinado palpite do ministro foi “um escorregão”, “um grande erro político” que não seria sequer levado em conta pelo presidente Lula. Não foi, aliás, o primeiro erro de Dirceu. Este também não pode ser atribuído à “in-com-pe-tên-cia” de terceiros.

Voltar ao topo