Demissão de empregado soropositivo: despedida discriminatória ou direito potestativo?

A partir de pesquisas realizadas em meados da década de 90, constatou-se que 90% das pessoas contaminadas ou que contraíram HIV, encontravam-se na faixa etária com capacidade para integrar a população economicamente ativa.

A partir de dados como este que acabamos de mencionar, é possível se ter a dimensão de como a discussão acerca da inserção do portador do vírus HIV no mercado de trabalho, bem como a manutenção do vínculo empregatício e a proteção à despedida imotivada, faz-se necessária.

Num primeiro momento, cumpre esclarecer que o que se pretende discutir não é a validade do direito potestativo do empregador de despedir o empregado e assim rescindir o contrato de trabalho, mediante o cumprimento de todas as obrigações decorrentes deste ato. Sendo assim, na hipótese de total desconhecimento do empregador de que o empregado é soropositivo, o despedimento é absolutamente regular. À guisa desta situação, a jurisprudência já se manifestou.

AIDS – DISCRIMINAÇÃO não configurada – Ausência de ciência pela empresa, quanto ao fato de ser o obreiro portador do vírus HIV. Empregado portador do vírus HIV. Demissão discriminatória não caracterizada, ante a ausência de conhecimento de seu estado pela empresa. Não há como se deferir a pretensão atinente à reintegração do empregado na empresa, mesmo sendo ele portador do vírus HIV, quando este não comprova de forma inconteste, que a empregadora tinha ciência de seu estado, e mais ainda, quando ele próprio reconhece que apesar de ter feito o exame demissional, não informou tal condição a ninguém. Da mesma forma, descabe indenização por danos morais, uma vez que ausentes os três requisitos configuradores do dano. (TRT – 9.ª. Reg. – RO-2027/2000 – Ac. 20524/2000 – 4.ª. T. – Rel: Juiz Luiz Celso Napp – Fonte: DJPR, 15.09.2000).

Outrossim, completamente diversa é a situação daquele empregador que conhece que o empregado é portador do vírus e o despede, ainda que este não seja este o motivo que ensejou efetivamente a rescisão.

Nesta hipótese, a dispensa do empregado tem sido considerada discriminatória e arbitrária, não podendo por esta razão subsistir. Neste diapasão, a maioria dos Tribunais Regionais e o Tribunal Superior do Trabalho, tem determinado a anulação da demissão bem como a reintegração do trabalhador no emprego.

Embora a legislação brasileira não apresente qualquer dispositivo expresso proibindo a dispensa de empregado soropositivo, tem-se entendido que a aplicação do artigo 3o, IV da Constituição Federal, em conjunto com uma interpretação analógica dos dispositivos presentes na Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei 9.029/95 que proíbe práticas discriminatórias, justifica a anulação do ato, bem como a reintegração do empregado.

Neste sentido, José Wilson Ferreira Sobrinho, assim se expressa em artigo publicado sob o título “O Aidético e o contrato de trabalho”:

“a despedida do empregado em razão de ele ser portador do vírus HIV é discriminatória por atentar contra o princípio constitucional da dignidade humana. Sendo discriminatória a despedida é carente de motivação adequada ou de justa causa, o que a torna arbitrária. O caráter arbitrário da despedida permite ao juiz que reintegre o empregado despedido com base no art. 165 da CLT, utilizado analogicamente com o fim de o vácuo normativo criado pela edição da Lei complementar prevista no art. 7o , inciso I, da Constituição Federal”.

A Lei 9.029/95 proíbe expressamente a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa, para efeito de acesso à relação de emprego ou a sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor estado civil, situação familiar ou idade.

Outrossim, ainda que a Lei não faça, explicitamente, referência aos trabalhadores portadores do vírus HIV, tem-se entendido que a enumeração apresentada pelo legislador não foi taxativa e exaustiva, mas apenas exemplificativa, eis que o objetivo principal do diploma legal foi coibir as mais diversas formas de discriminação no ingresso ou no curso da relação empregatícia.

Pode-se dizer ainda, que o próprio artigo 3o, inciso IV da CF/88, ao estabelecer expressamente que constituem direitos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, respalda a posição aqui defendida.

Portanto, a conclusão hoje adotada pela maioria da doutrina e da jurisprudência especializada é no sentido de que, embora inexista em nosso ordenamento, documento legal que assegure, explicitamente, ao portador do vírus HIV/AIDS a relação jurídica de trabalho, com base na analogia e na equidade, a nulidade da despedida arbitrária e discriminatória, bem como a reintegração do empregado, encontram amparo legal.

Inúmeros são os entendimentos da jurisprudência neste mesmo sentido:

Verbete: GARANTIA DE EMPREGO – EMPREGADO com AIDS – Inadmissibilidade de exigência de TESTE de HIV – ART. 5/CF, caput. Garantia de emprego. Aids. Vedação à dispensa arbitrária. Como partícipe de sua comunidade e dela refletindo sucessos e insucessos, ganhos e perdas, segurança e risco, saúde e doença, a empresa atualmente já assimila o dever de colaborar na luta que amplamente se trava contra a AIDS e, através de suas lideranças, convenciona condições coletivas em que se exclui a exigência de teste HIV por ocasião da admissão no emprego (acatando recomendação do Conselho Regional de Medicina) ou na vigência do contrato, e veda a demissão arbitrária do empregado que tenha contraído o vírus, assim entendida a despedida que não esteja respaldada em motivo econômico, disciplinar, técnico ou financeiro. E isso sob o fundamento de que a questão envolve a vulnerabilidade da saúde pública, não podendo a categoria econômica furtar-se à responsabilidade social que inegavelmente detém. Além do mais, a inviolabilidade do direito à vida está edificada em preceito basilar (artigo 5.º, caput, da Constituição Federal). (TRT – 2.ª. Reg. – RO-20000089774 – Ac. 20010032465 – 8.ª. T. – Rel: Juíza Wilma Nogueira de Araujo Vaz da Silva – Fonte: DOESP, 27.03. 2001).

Verbete: AIDS – REINTEGRAÇÃO de empregado soropositivo – Admissibilidade – Reintegração – Empregado portador do vírus da AIDS – Caracterização de despedida arbitrária. Muito embora não haja preceito legal que garanta a estabilidade ao empregado portador da síndrome da imunodeficiência adquirida, ao magistrado incumbe a tarefa de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes para solucionar os conflitos ou lides a ele submetidas. A simples e mera alegação de que o ordenamento jurídico nacional não assegura ao aidético o direito de permanecer no emprego não é suficiente a amparar uma atitude altamente discriminatória e arbitrária que, sem sombra de dúvida, lesiona de maneira frontal o princípio da isonomia insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista conhecida e provida. (TST – RR-217791/95.3 – 9.ª. Reg.- Ac. 2.ª. T.-3473/97 – unân.- Rel: Min. Valdir Righetto – Fonte: DJU I, 06.06.97, pág. 25270).

Verbete: AIDS – Empregado soropositivo – Inexistência de ESTABILIDADE – Direito à REINTEGRAÇÃO – DESPEDIDA ARBITRÁRIA e anti-social caracterizada – Ocorrência de DISCRIMINAÇÃO – ART. 5/CF – ART. 476/CLT – LEI 7670/88. Servidor público – Aplicação da Lei 7.670/88 – Reintegração – Aidético – Dispensa anti-social ou arbitrária obstativa ao seguro-doença – Discriminatória – Nulidade do ato patronal. Empregado portador do vírus da AIDS não é beneficiário de estabilidade (Lei 7.670/88), por não ostentar a condição de servidor público. A reintegração, “in casu”, decorre do ato patronal eivado de nulidades, configurando-se a despedida anti-social ou arbitrária, obstativa ao seguro-doença, além de discriminatória (Inteligência e aplicação do artigo 5.º da CF/88, artigo 5º da LICC, artigo 476 da CLT e princípios protetores do Direito do Trabalho). (TRT – 3a. Reg. – RO-06763/94 – 1.ª. JCJ de Belo Horizonte – Ac. 3.ª. T. – maioria – Rel: Alfio Amaury dos Santos – Fonte: DJMG II, 07.02.95, pág. 52).

16116 – AIDS – Portadora de HIV tem direito à estabilidade no emprego. Dispensa imotivada presumida discriminatória. Reintegração determinada. Os direitos à vida, à dignidade humana e ao trabalho, levam à presunção de que qualquer dispensa imotivada de trabalhadora contaminada com o vírus HIV é discriminatória e atenta contra os princípios constitucionais insculpidos nos arts. 1.º, incs. III e IV, 3.º inc. IV, 5.º, caput e inc. XLI, 170, 193. A obreira faz jus à estabilidade no emprego enquanto apta para trabalhar, eis que vedada a despedida arbitrária (art. 7.º, inc. I, da Constituição Federal). Reintegração determinada enquanto apta para trabalhar. Aplicação dos arts 1º e 4º inc. I, da Lei n.º 9.029, de 13 de abril de 1995 (cf. CLT, art. 8.º c/c CPC, art. 126 c/c LICC, art. 4.º). O riscos da atividade econômica são da empresa empregadora (CLT, art. 2.º), sendo irrelevante eventual queda na produção, pois a recessão é um mal que atinge todo o país. (TRT 15.ª R. – RO 004205/1999 – (29.060/00) – 3.ª T. – Rel. Juiz Mauro César Martins – DOESP 15.08.200008.15.2000)

Diante dos argumentos acima transcritos, pode-se concluir que o entendimento que hoje predomina, tanto na esfera legislativa, como no Judiciário, é no sentido de coibir a prática de condutas claramente discriminatórias, como ocorre com a dispensa imotivada de empregado acometido pelo vírus HIV, que ainda mantém condição laborativa.

Por fim, vale dizer que, embora a grande maioria da doutrina e da jurisprudência entenda que a demissão de empregado portador do vírus HIV, caracteriza conduta arbitrária e discriminatória, gerando direito à reintegração ao emprego ou pagamento de indenização, existem aqueles que sustentam ser válida a dispensa do portador do vírus HIV, não encontrando, no ordenamento jurídico pátrio amparo legal que sustente o direito à reintegração do emprego.

Neste caso, sustentam os defensores desta corrente, que a despedida sem justa causa, nada mais é do que o exercício do direito potestativo do empregador de demitir.

Verbete: REINTEGRAÇÃO – Incabimento – Portador do vírus HIV – AIDS – Inexistência de PROVA. Reintegração. Portador do vírus HIV. Reintegração. No momento, não existe norma legal que assegure garantia de emprego para o doente de AIDS. Não houve prova nos autos de que o reclamante foi discriminado no emprego para ter direito à reintegração. Pedido de reintegração improcedente. (TRT – 2.ª. Reg. – RO-20010087421 – Ac. 20020092738 – 3.ª. T. – Rel: Juiz Sérgio Pinto Martins – Fonte: DOESP, 05.03.2002).

Em nosso ponto de vista, é manifesta a arbitrariedade e a atitude discriminatória do empregador que demite empregado soropositivo, razão pela qual esta atitude deve ser coibida através de todos os meios possíveis existentes em nosso ordenamento jurídico, como por exemplo, a declaração da nulidade da demissão e a reintegração do empregado ao emprego.

Vanessa Karam de Chueiri Sanches

é especialista em Direito do Trabalho e advogada trabalhista.

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