Esperança do acolhimento

Ao relento em Curitiba: a abordagem social que nos leva aos limites da indiferença

Imagem mostra uma equipe da FAS atuando para retirar pessoas do frio da rua em Curitiba
Foto: Átila Alberti/Tribuna do Paraná.

Todos somos egoístas, até que se prove o contrário. Para mim e para você, leitor, o egoísmo é, muitas vezes, reconhecido na mesquinharia do cotidiano. É o instinto que fala mais alto ao tentar proteger nossos bens e companheiros. Quando quiser aprender o oposto, vá para as ruas. É lá que se conhece a verdade nua e crua sobre a solidariedade.

Fui às ruas acompanhar o início de uma noite de abordagens a pessoas em situação de rua. Nosso ponto de partida foi a Central de Encaminhamento Social (CES) da Fundação de Ação Social (FAS), que funciona 24 horas por dia. Lá, conhecemos Jônatas, coordenador da Central; Maurício, nosso motorista; e Claudiane Grokoski, educadora que atuaria em outro veículo.

>> Na linha de frente: coordenador da FAS percorre as ruas todos os dias para acolher quem precisa

Às 18h30, a movimentação começa. Os carros levam mantas térmicas contra a chuva e cobertores contra o frio. A rota começa com o atendimento de dois protocolos enviados pela Central 156. Para nossa sorte, ou não, a chuva também começa o expediente conosco.

A primeira abordagem é a de um senhor, localizado próximo ao Shopping Curitiba, no Centro da cidade. Enquanto seguimos pela Avenida Sete de Setembro, tentamos localizar quem procuramos. A chuva embaça os vidros e a iluminação pública turva a visão das calçadas, dificultando nosso reconhecimento.

Sacos nas calçadas se confundem facilmente com pessoas enroladas em cobertores. Para encontrá-los, os olhos precisam ser treinados para reconhecer quem precisa de ajuda. Enrolado da cabeça aos pés em um cobertor, seu Rozando é acordado por Jônatas.

Rapidamente, ele recusa o acolhimento, mas aceita um novo cobertor e a manta térmica. A dois passos dele, a calçada está molhada pela chuva. Mas o cantinho onde ele se abriga permanece seco, suficiente para passar a noite. O desconforto se torna aceitável com os cobertores, uma espiga de milho guardada para o jantar e uma garrafa de guaraná ao lado da cabeça no meio-fio. Às 18h57, com 7 ºC, as vans seguem vazias na rota daquela noite.

Imagem mostra uma equipe da FAS atuando para retirar pessoas do frio da rua em Curitiba
Foto: Átila Alberti/Tribuna do Paraná.

A próxima parada é na Praça Rui Barbosa. O acesso é feito pela rua André de Barros. Paramos o carro e caminhamos à procura do próximo atendimento. Para nossa surpresa, a praça está vazia. “Deve ser a chuva”, pensei em voz alta. Claudiane responde: “É só ligar o giroflex que, daqui a pouco, nossos clientes aparecem”. Rimos da expressão, mas ela se confirma. Eles aparecem.

No retorno aos carros, um senhor está sob a marquise ao lado da garagem do estacionamento. Ele ajeita dois pares de meia improvisados. Em cada pé, uma sacola de supermercado esconde os dedos calçados nos chinelos. Nas mãos, segura outras duas sacolas com seus pertences e uma marmita de isopor.

Enquanto conversa com os educadores, entendo que seu nome é algo como José Carlos. Como um cliente que sabe o que quer, José aceita rapidamente embarcar na van. Mais rápido ainda, aceita deixar seus pertences para trás. Mas hesita em se desfazer da comida. Não porque queria comer depois, mas porque seria um desperdício: alguém poderia aproveitá-la.

Ao avistar outro conhecido, José entrega a marmita. Se o outro vai aceitá-la ou não, ele não se importa. Juntos, decidem deixá-la no meio-fio, protegida da chuva, à espera de quem precise.

A educadora estende o convite ao outro homem: “Quer dormir em um lugar quentinho?”. Ele hesita, mas aceita. “Tem um documento aí?”, pergunta Jônatas. “Tenho, mas deve estar um pouco molhado”, responde. Tento entender seu nome completo, mas me contento com “João”. Às 19h21, com 7 ºC, duas pessoas estão embarcadas.

Antes de partirmos, outro homem se aproxima. Consideravelmente mais agasalhado, veste moletom preto, calça jeans, calçado e touca. Seu nome é André. Esse escuto com clareza. “Posso pegar uma manta? Só quero dormir um pouco”, diz ele. André recusa ir para um abrigo, mas insiste na manta. Ele assina a lista e recebe o cobertor. “Se mudar de ideia, procure a gente”, reforça Claudiane.

Com metade da lotação preenchida, seguimos até a casa de acolhimento, onde José e João vão se banhar, comer e passar a noite. Na unidade da rua Doutor Faivre, a lotação está cheia e há uma pequena aglomeração do lado de fora.

Alguns gritam, outros cantam, e alguns vão até a van pedir cobertores. Um homem de camisa branca e outro de blusa vermelha aguardam. O segundo até me aborda, mas fica visivelmente frustrado quando explico que sou apenas acompanhante da equipe.

Jônatas oferece levá-los a outra unidade no Centro. O homem de branco aceita, mas diz que precisa buscar o irmão. Internamente, comemoro. Mas, na saída, ele não retorna. Fico com receio de que tenha desistido — ou sido convencido a desistir pelo irmão.

A próxima abordagem é confirmada por telefone, ainda na mesma rua. Enrolado em um edredom listrado de branco e azul, um homem se camufla na calçada. Jônatas o cutuca. Ele resmunga, mas ouve a oferta. “Quero”, responde alto, com entusiasmo.

Sentado no meio-fio, passa seus dados a Jônatas. “Obrigado, meu Deus”, exclama, em um tom ainda mais alto. Enquanto tira a identidade do agasalho, noto um corte seco no rosto. “O que você fez aí?”, pergunta o educador. “Só um cortezinho”, responde o homem de olhos azuis, vestido num tom com agasalho e calça jeans, monocromático.

Enquanto preenchemos os formulários, compartilhamos um sentimento recíproco: o de ser percebido. “Boa noite, moça”, diz ele, com um sorriso. “Boa noite”, respondo. Ao fotógrafo Átila Alberti, ele amplia a cortesia: oferece um aperto de mão. Ao atravessar a rua para entrar na van, deixa o edredom para trás. Naquela noite, não será necessário. Às 20h, a van volta a rodar.

A outra equipe leva o homem ao abrigo, ao mesmo tempo em que retornamos à CES. Jônatas ainda tem compromissos administrativos. Ali, deixo de ser apenas observadora e entrevisto o coordenador, que se emociona ao falar sobre seu trabalho. Nos despedimos com agradecimentos.

De volta à minha casa, reencontro a ordinariedade. Os casacos que faltaram a alguns naquela noite se avolumam no meu cabide, ao lado de tantos outros. Mas isso é detalhe. Nesta noite, a minha mesquinharia é abrir o armário e tirar mais um cobertor.

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