Critérios para a Valoração das Circunstâncias Judiciais (art. 59, do CP) na Dosimetria da pena (III)

Dando continuidade à proposta apresentada nos últimos artigos, passa-se a abordar a segunda circunstância judicial prevista no caput do art. 59, do Código Penal:

Dos antecedentes do condenado

No que tange à circunstância judicial que perquire a vita anteacta do sentenciado, cumpre verificar, preliminarmente, que a doutrina e a jurisprudência divergem quanto às situações que podem ser consideradas como “maus antecedentes”. Contudo, é preciso lembrar que “a pena há de ter critérios e limites para a sua aplicação, em respeito mesmo à dignidade da pessoa humana”(1) e que, portanto, a valoração das circunstâncias judiciais não deve fugir à regra de que as leis, sobretudo as penais, devem ser interpretadas sob o prisma das garantias individuais asseguradas pela Carta Magna.

Inicialmente, há que se considerar que somente fatos anteriores(2) à prática do delito que se está punindo podem caracterizar antecedentes, pois os demais configurariam impuníveis “conseqüentes”. Superada esta questão, impende registrar que, por “antecedentes”, devem entender-se apenas os judiciais. Caso exista, nos autos, notícia de antecedentes “desabonadores” que digam respeito à vida privada do condenado, poderá ela, quando pertinente, ser sopesada na análise da “conduta social(3)”, ou, talvez, da “personalidade” do apenado; porém, nunca, dos antecedentes. Apesar disso, há os que confundem as circunstâncias, conforme alertam Salo de Carvalho(4) e Fragoso(5).

Não se pode sopesar, por ocasião da análise dos antecedentes, a condição de reincidente do sentenciado. Como é cediço, a reincidência deve ser sopesada na segunda etapa dosimétrica, por constituir circunstância agravante (art. 61, I, do CP). O Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Paraná alerta para esta distinção, verbis: “A reincidência não deve ser considerada na análise dos antecedentes do condenado na fase de individualização da pena, mas tão-somente como agravante.”(6).

Será reincidente aquele que, na data em que praticou o crime que se está julgando, já possuía condenação definitiva (transitada em julgado) por outro crime anterior (art.63, do CP). Todos aqueles em situação diversa desta podem ser considerados não reincidentes. Também serão não reincidentes aqueles que possuírem, na data do delito, condenação definitiva por crime militar próprio ou politico (art. 64, II, do CP) e aqueles em que decorreu lapso de tempo superior a cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração que se está julgando (em razão do período qüinqüenal depurador da reincidência, art. 64, I, do CP).

Já sabendo que se excluem do conceito: os “antecedentes” não judiciais, os fatos subseqüentes ao delito e a condição de reincidente, cabe, agora, descobrir a quem se pode chamar “possuidor de maus antecedentes”. Recorre-se, para tanto, ao processo de eliminação de possibilidades ensinado por Maria Fernanda Podval(7), acrescentando-se, a ele, ainda, outras hipóteses de exclusão ao conceito.

Com muita propriedade, a autora percebe que, em respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência(8), não se podem considerar como maus antecedentes: a mera instauração de inquérito policial, nem a existência de ações penais em andamento, nem mesmo quando há sentença penal condenatória que ainda não transitou em julgado.

Esse entendimento, contudo, não é pacífico nos Tribunais, o que constitui fato lamentável. Se a própria Carta Magna estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não pode o juiz, aumentar a pena de alguém com base na existência de uma ação penal que ainda não se concluiu, sob pena de um cidadão cumprir tempo maior de pena pela simples possibilidade de condenação (que também representa possibilidade de absolvição), em outro processo. Mais do que irracional, esse posicionamento é inconstitucional, violador das garantias individuais do cidadão. É realmente triste constatar que, mesmo o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal, tem violado esta garantia na maioria dos julgamentos que envolvem o tema, restando expresso, em alguns deles, sem qualquer pudor, o verdadeiro desprezo à Lei Maior, como no caso do RHC n.º 80.071/RS, em que constou do voto do min. Maurício Corrêa que “pouco importa se se cumpriu o inciso LVII do artigo 5.º da Constituição, ou não, quer dizer, aguardar-se o trânsito em julgado da decisão para que se levassem em conta os maus antecedentes”(9). A ordem para reformar a pena, naquela ocasião, só foi concedida, por empate, constando do brilhante voto do Min. Celso de Mello que: “o ato judicial de fixação da pena não poderá emprestar relevo jurídico-legal a circunstancias que meramente evidenciem haver sido, o réu, submetido a procedimento penal-persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo trânsito em julgado, qualquer condenação de índole penal () Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave e inaceitável lesão ao princípio constitucional que consagra a presunção juris tantum de não-culpabilidade dos réus ou dos indiciados”.

Não podem, ainda, ser consideradas como maus antecedentes as condenações anteriores por crimes militares próprios e por crimes políticos, porque a lei as exclui do conceito de reincidência, e não o fez por acaso. As excluiu ora porque puniam condutas administrativas, ora porque a motivação do agente o diferenciava do criminoso comum.

Não caracterizam, ainda, maus antecedentes os fatos ocorridos antes da maioridade penal do condenado(10), por não poderem, graças à anterior inimputabilidade do agente, constituir qualquer gravame na culpabilidade. Exacerbar a pena por fatos praticados quando o agente estava fora do alcance da norma penal contraria a lógica e o bom senso(11).

Também não se consideram maus antecedentes as condenações cuja pena foi cumprida ou extinta há mais de cinco anos da prática delitiva, decorrendo essa proibição, por lógica(12), do prazo qüinqüenal depurador da reincidência, previsto no artigo 64, inciso I do Código Penal, garantidor de que o cidadão não será eternamente discriminado. A jurisprudência, no entanto, diverge: ora está neste sentido(13), ora contra(14).

Ainda, excluem-se dos maus antecedentes: as propostas aceitas de suspensão condicional do processo(15) e de transação penal e, ainda, os acordos civis extintivos da punibilidade, pois todas essas medidas trazidas pela Lei n.º 9099/95 não possuem natureza condenatória nem há, nelas, qualquer admissão de culpa pelo “beneficiado”.

Finalmente, ao contrário do que prega parte da jurisprudência(16), a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva do Estado, em outra ação penal, não pode gerar antecedentes(17), por respeito também ao princípio da presunção de inocência, já que, tanto quando ocorre a prescrição pela pena em abstrato, quanto pela pena em concreto, resta prejudicada a análise do mérito (pelo Juízo sentenciante ou pelo Tribunal a quo, respectivamente).

Pelo processo de eliminação da Professora Podval (ao qual se acrescentaram mais algumas situações de não caracterização de maus antecedentes), “deve-se concluir que por maus antecedentes entendem-se apenas as condenações anteriores por contravenção e as condenações com trânsito em julgado após a segunda conduta(18)”.

A primeira das hipóteses, deve-se ao fato de que, apesar de constituírem infrações penais, as contravenções (Decreto-Lei n.º 3688/41) quando implicam condenação definitiva, não geram reincidência porque a lei se refere expressamente à condenação anterior por crime. Exceção a essa regra, é o caso do agente que está sendo julgado por prática de contravenção penal e que já possuía anterior condenação por contravenção: aí será considerado reincidente, como dispõe o artigo 7.º da LCP.

Na segunda das situações, o agente, quando praticou a conduta que se está punindo, já havia praticado outro crime, contudo, só veio a ser condenado definitivamente por este após praticar aquele. Tal situação não se enquadra no conceito de reincidência, mas, por haver trânsito em julgado da condenação, é justo que se recrudesça a reprimenda ao agente, tendo em vista que, ao praticar o delito, já havia praticado outro, o que indica maior reprovação à conduta.

No que diz respeito à prova dos antecedentes, há que se considerar a certidão cartorária de antecedentes criminais, com explícita referência à data do trânsito em julgado da eventual condenação(19). Portanto, o magistrado deve, sempre, indicar os elementos constantes dos autos que caracterizam os maus antecedentes, não podendo, simplesmente, afirmar que o acusado os possui, sob pena de nulidade.

Notas

(1) David Teixeira de Azevedo, Dosimetria da Pena, São Paulo: Malheiros, 1998, p. 69.

(2) David Teixeira de Azevedo, ob. cit., p.205.

(3) José Antonio Paganella Boschi, Das Penas e Seus Critérios de Aplicação, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.209.

(4) Salo de Carvalho; Amilton Bueno de Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.41.

(5) Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, 14.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 322.

(6) CN 6.12.6.2.

(7) Maria Fernanda de Toledo Rodovalho Podval, Maus antecedentes: em busca de um conteúdo, apud Maurício Kuehne, Teoria e Prática da Aplicação da Pena, 4.ª ed., Curitiba: Juruá, 2003, p.180.

(8) Constituição Federal, art. 5.º, inciso LVII.

(9) STF, 2.ª Turma: Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.º 80.071-8/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 02/04/2004.

(10) Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p.89.

(11) Apelação Criminal, TACRIM-SP, Rel. Fernando Matallo, j. 13/07/96, apud Alberto Silva Franco, Código Penal e sua Interpretação Judicial, São Paulo: RT, 2001, p. 1053.

(12) José Antonio Paganella Boschi, ob. cit., p. 208.

(13) STJ, 6.ª Turma: Recurso em Habeas Corpus n.º 2227/MG, Rel. Min. Pedro Acioli, DJU 29/03/93.

(14) STF, 2.ª Turma, Habeas Corpus n.º 76.665/SP, Rel. Min Marco Aurélio, DJU 04/09/1998.

(15) José Eulálio Figueiredo de Almeida, Sentença Penal, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.68.

(16) TRF-4, 2.ª Turma, Apelação Criminal n.º 940451142-0/RS, Rel. Juíza Tânia Escobar, DJ 01/11/95

(17) STJ, 6.ª Turma: Recurso Especial n.º 30307-8/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 22/09/2003.

(18) Maria Fernanda de Toledo Rodovalho Podval, ob. cit, apud Maurício Kuehne, ob. cit, p.181.

(19) José Antonio Paganella Boschi, ob. cit., p. 208.

Juliana de Andrade Colle

é advogada criminalista, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito de Curitiba e no Curso Jurídico.

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