Crimes fiscais. Esgotamento da via administrativa. Necessidade

A nossa doutrina e jurisprudência, com raríssimas exceções, tinha pacificado entendimento no sentido de que a discussão do débito fiscal na via administrativa não conferia reflexo na via judicial, especialmente penal, cujo fundamento centrava-se na independência destas esferas.

Dito entendimento tinha como principal norte as seguintes conclusões:

1. Caso a decisão administrativa reconhecesse a inexistência do fato gerador, ou a inexistência de débito tributário, este julgamento afetaria a persecução criminal, independentemente do estado em que se encontrasse, para o fim de reconhecer a atipicidade da conduta imputada.

2. Na hipótese do julgamento administrativo reconhecer apenas a nulidade do procedimento fiscal, ele não teria qualquer efeito na esfera penal.

3. No caso de provimento, parcial ou total do recurso administrativo, com reconhecimento de redução do valor exigido, também não conferia qualquer reflexo na esfera penal. Havia ainda outras posições de menor importância.

Todo este debate tinha, e tem, além da discussão quanto ao mérito desta questão, também a aferição quanto a possibilidade, ou não, de se dar prosseguimento a persecução criminal quando ainda encontrar-se pendente de julgamento o recurso administrativo.

O debate sobre esta matéria aumentou quando a Lei n.º 9.430, de 27.12.1996, deixou expresso no seu artigo 83 que “A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1.º e 2.º da Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.”

No findar do ano passado o Egrégio Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 81.611, veio a confirmar este entendimento, cuja decisão é a seguinte:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. TRIBUTÁRIO. CRIME DE SUPRESSÃO DE TRIBUTO (ART. 1.º DA LEI 8.137/1990). NATUREZA JURÍDICA. ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. 1. Na linha do julgamento do HC 81.611 (rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário), os crimes definidos no art. 1.º da Lei 8.137/1990 são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo. 2. Se está pendente recurso administrativo que discute o débito tributário perante as autoridades fazendárias, ainda não há crime, porquanto “tributo” é elemento normativo do tipo. 3. Em conseqüência, não há falar-se em início do lapso prescricional, que somente se iniciará com a consumação do delito, nos termos do art. 111, I, do Código Penal. (HC 83414 / RS, Primeira Turma. Publicação: DJU de 23-04-04).”

Este mesmo Areópago ao julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em ataque ao citado artigo 83, pelo Procurador-Geral da República, deu-a por improcedente, reconhecendo, entretanto, a possibilidade do Ministério Público oferecer denúncia sempre que tiver conhecimento da constituição definitiva do débito tributário, independentemente de representação fiscal. Verbis:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 83 da Lei no 9.430, de 27.12.1996. 3. Argüição de violação ao art. 129, I da Constituição. Notitia criminis condicionada “à decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário”. 4. A norma impugnada tem como destinatários os agentes fiscais, em nada afetando a atuação do Ministério Público. É obrigatória, para a autoridade fiscal, a remessa da notitia criminis ao Ministério Público. 5. Decisão que não afeta orientação fixada no HC 81.611. Crime de resultado. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário não há justa causa para a ação penal. O Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita “representação tributária”, se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo. 6. Não configurada qualquer limitação à atuação do Ministério Público para propositura da ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 7. Improcedência da ação. ADI N. 1.571-DF RELATOR: MIN. GILMAR MENDE (Informativo STF n.º 345)”

Novamente, nos meados deste mês a nossa Corte Suprema julgou esta matéria, cuja decisão constou no site do Tribunal, nos seguintes termos:

“A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou, condenação da Justiça estadual de São Paulo imposta a Elaine Cristina do Prado Brunheroto Pires, José Carlos Andrade Gomes e José Gallardo Dias por suposta prática de crime contra a ordem tributária. A decisão foi aprovada com o provimento de Recurso em Habeas Corpus (RHC 82390) interposto pela defesa dos três.

De acordo com relato feito pelo ministro Pertence, eles foram condenados por fraude fiscal tributária, consistente na inserção de dados inexatos em livros contábeis, com o fim de recolher imposto a menor (artigo 1.º, inciso II da Lei 8.137/90). A defesa recorreu ao Supremo contra o recebimento da denúncia antes de decisão definitiva em processo administrativo.

O recurso pedindo o cancelamento da exigência fiscal foi apresentado ao Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, em julho de 1995. Antes que fosse julgado, houve o oferecimento da denúncia, recebida em junho de 1996. A sentença concluiu que o encerramento da ação administrativa não seria necessário para impedir o andamento da Ação Penal.

O ministro Sepúlveda Pertence observou que, no julgamento do Habeas Corpus 81.611, o Supremo firmou o entendimento de que “nos crimes previstos no artigo 1.º da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, configurando-se como elemento essencial à exigibilidade da obrigação tributária”.

Por maioria, os ministros da Primeira Turma acompanharam o voto-vista do ministro Sepúlveda Pertence, para anular o processo a partir do recebimento da denúncia. Foi voto vencido o ministro aposentado Moreira Alves, que era o relator da matéria.” (In, Notícias do STF de 11/05/2004).

Nesta esteira seguiu o Egrégio Tribunal Regional Federal da Quarta Região, ainda que, tal qual ocorreu na Suprema Corte, com divergência entre os seus pares. Verbis:

“A despeito de a representação de que trata o art. 83 da Lei n.º 9.430/96 não configurar condição de procedibilidade para a instauração da ação penal (ADI n.º 1.571, rel. Min. Gilmar Mendes), a denúncia, no crime contra a ordem tributária previsto no art. 1.º da Lei n.º 8.137/90, não pode ser recebida sem que haja constituição definitiva do crédito tributário, requisito que constitui, nas palavras do eminente Ministro Sepúlveda Pertence, condição objetiva de punibilidade (HC n.º 81.611-8-DF). (Rel. Des. Fed. Paulo Afonso Brun Vaz, ap. crim, 2000.72.08.002522-0, DJU2, 31.03.04, p 551).

As Sétima e Oitava Turmas, que compõem a Quarta Seção do Tribunal atrás citado, quando reunidas apreciaram esta matéria, confirirmando o entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal, conforme noticiado no informativo semanal do TRF4, n.º 190. Verbis:

“Em decisão majoritária, a Quarta Seção do Tribunal deu provimento aos embargos, acompanhando nova orientação do STF, que deixou assentado que, nos crimes do art. 1.º da Lei 8.137/90, que são crimes materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo constitui condição objetiva da punibilidade, sem a qual a denúncia não pode ser recebida, uma vez que a competência para constituir o crédito tributário é privativa da autoridade fiscal, cuja existência ou montante não se pode firmar até que haja o efeito preclusivo da decisão final do processo administrativo. Divergiram os Des. Federais Germano da Silva e Tadaaqui Hirose, entendendo que a constituição do crédito tributário é imprescindível para fins de cobrança da dívida fiscal, mas não como condição de procedibilidade para a instauração da ação penal, haja vista a independência e autonomia das instâncias cível, penal e administrativa. Participaram do julgamento os Des. Federais Élcio Pinheiro de Castro, Maria de Fátima Labarrère, Paulo Afonso Brum Vaz e Wowk Penteado. Precedentes citados: STF: ADI 1571, DJU 10-12-2003; HC 81.611-8/DF, DJU de 19-12-03. Emb. Infringentes e de Nul. em ACR n.º 2001.04.01.085766-0/PR Relator: Desembargador Federal José Germano da Silva Relatora para o acórdão: Desembargadora Federal Maria de Fátima Labarrère Sessão do dia 18-03-2004.”

Ainda neste sentido, e do mesmo Tribunal, encontramos as seguintes decisões: Apelação Criminal n.º 2000.72.08.002522-0/SC Relator: Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Sessão do dia 24-03-2004; Apelação Criminal n.º 2000.72.08.002522-0/SC Relator: Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Sessão do dia 24-03-2004; Habeas Corpus n.º 2004.04.01.005069-8/SC Relator: Desembargador Federal José Germano da Silva Sessão do dia 23-03-2004; Habeas Corpus n.º 2004.04.01.004303-7/SC Relator: e Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro Sessão do dia 28-04-2004.

Gostem ou não, é esta a atual posição do Egrégio Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, os quais, ainda que por maioria, decidiram tal matéria, determinado que a persecução criminal somente pode prosseguir após esgotada a via administrativa, e ainda que o Ministério Público não depende de representação fiscal para oferecer denúncia em crimes fiscais, sendo indispensável, entretanto, que o crédito tributário reste definitivamente constituído.

Este entendimento vem, por via obliqua, também demonstrar a necessidade efetiva de análise das autuações fiscais pelas defesas dos autuados, e se for o caso, interposição de recursos, com defesa ampla, seja no aspecto material ou processual da autuação, pois este procedimento tem reflexo na esfera penal, podendo até mesmo livrar o empresário de condenação penal, ou de cumprimento de pena privativa de liberdade.

Seguindo esta linha de interpretação pensamos que os débitos objeto de discussão na esfera judicial também merecem este mesmo tratamento, haja vista que o debate judicial também pode ter um questionamento quanto a liquidez do débito tributário, não podendo, por outro lado, ser considerado de valor legal inferior ao conferido pelos nossos Tribunais ao administrativo.

Também esta regra aplica-se a todos os feitos criminais, seja inquérito policial, ação penal com andamento em qualquer grau de jurisdição, e até mesma execução de condenações penais, devendo em qualquer uma destas hipóteses suspender-se o andamento do feito ou a execução da pena.

Esta matéria tem inúmeras outras conotações e enfoques, que dada a concisão desta modalidade de artigo não é possível aqui enfrentarmos a contento. Entretanto, caso haja interesse dos leitores em debater esta matéria, em qualquer sentido que seja, isso poderá ser feito através do nosso e-mail, ou do Caderno Direito e Justiça, para que possamos trocar opiniões e argumentos, inclusive sobre questões fáticas, os quais podem servir até mesmo de fundamento para outro ou outros artigos nesta coluna sobre esta matéria, inclusive podendo ser produzido pelos leitores questionadores após algumas trocas de opiniões.

Jorge Vicente Silva

é advogado, professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas, Pós-graduado em Pedagogia a nível superior e Especialista em Direito Processual Penal pela PUC/PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, “Tóxicos – Análise da nova lei”, “Manual da Sentença Penal Condenatória”, e no prelo, “Estatuto do Idoso – Aspecto Penal e Processual Penal” e “Crime Fiscal – Manual Prático”. E-mail: “jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br” Site “jorgevicentesilva.com.br”

Voltar ao topo