Crimes de corrupção de funcionário público estrangeiro

Com o advento da Lei n.º 10.467, de 11 de junho de 2002, que acrescenta o Capítulo II-A (Dos Crimes praticados por Particular contra a Administração Pública Estrangeira) ao Título XI do Código Penal, bem como o inciso VIII à Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, que trata dos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, dá-se efetividade à Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997, aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 125, de 14 de junho de 2000, e promulgada pelo Decreto da Presidência da República n.º 3.678, de 30 de novembro de 2000 (art. 1.º), agregando como bem jurídico protegido pelo Direito Penal pátrio a honorabilidade da Administração Pública estrangeira.

A tutela penal da Administração Pública abrange “o interesse público concernente ao normal funcionamento e ao prestígio da administração pública em sentido lato, naquilo que diz respeito à probidade, ao desinteresse, à capacidade, à competência, à disciplina, à fidelidade, à segurança, à liberdade, ao decoro funcional e ao respeito devido à vontade do Estado em relação a determinados atos ou relações da própria admministração”(1). Assim, o Direito Penal atua, primordialmente, no âmbito administrativo, no combate à corrupção – o “fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troco de recompensa.”(2)

Para tal desiderato, acrescentaram-se ao Código Penal três artigos (337-B, 337-C e 337-D), dos quais dois tratam de novas figuras penais (corrupção ativa em transação comercial internacional e tráfico de influência em transação comercial internacional e suas respectivas qualificadoras), e um que, utilizando a mesma sistemática do artigo 327 do Código Penal, conceitua funcionário público estrangeiro e as pessoas a ele equiparadas.

O artigo 337-B, ao tratar do crime de corrupção ativa em transação comercial internacional, dispõe: “Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional: Pena ? reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.”

Da análise do tipo observa-se que (I) o bem jurídico tutelado é a Administração Pública estrangeira; (II) o sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, inclusive o agente público; (III) os sujeitos passivos do delito são o Estado nacional e o Estado estrangeiro; (IV) o elemento subjetivo do tipo é o dolo, a consciência e vontade de realizar a conduta típica; (V) a conduta típica consiste em prometer, oferecer ou dar vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a qualquer outro, para obter vantagem indevida em transação comercial internacional; (VI) o crime classifica-se em comum, comissivo, de ação múltipla, formal (prometer e oferecer) ou material (dar).(3)

A pena cominada é a mesma prevista para o crime de corrupção ativa praticado por particular contra a Adminitração Pública nacional. Sendo a pena de reclusão de 1 (um) a 8 (oito) anos, é aplicável, em tese, a suspensão condicional do processo prevista no artigo 89, “caput”, da Lei n.º 9.099, de 27/9/1995. A conduta é majorada na hipótese do parágrafo único. A natureza da ação penal é pública incondicionada.

O artigo 337-C, que trata do crime de tráfico de influência em transação comercial internacional, consigna: “Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional: Pena ? reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

Do tipo penal vemos que (I) o bem jurídico tutelado e (II) o sujeito ativo do delito equivalem aos do delito de corrupção ativa em transação comercial internacional; (III) os sujeitos passivos do delito são o Estado nacional e o estrangeiro e, também, o contratante internacional que sofre o prejuízo causado pela fraude; (IV) o elemento subjetivo do tipo é o dolo, a conciência e vontade, de realizar a conduta típica; (V) a conduta típica consiste em solicitar, exigir, cobrar ou obter vantagem ou promessa de vantagem, iludindo o contratante internacional, alegando que pode influir no exercício funcional de funcionário público estrangeiro; (VI) o crime se classifica em comum, comissivo, de ação múltipla, formal (solicitar, exigir e cobrar) ou material (obter).(4)

A pena cominada é a mesma prevista para o crime de tráfico de influência praticado por particular contra a Administração Pública nacional. A conduta é majorada na hipótese do parágrafo único. A ação penal é pública incondicionada.

A inovação legislativa, propriamente, deveu-se à inclusão dos elementos normativos do tipo(5) funcionário público estrangeiro e transação comercial internacional.

O conceito de funcionário público, diga-se, é puramente normativo, ou seja, depende do conteúdo que o regime jurídico lhe atribui(6). A expressão funcionário público possui significado amplo para abrigar todos os agentes públicos, “independentemente da natureza substancial da atividade que se lhes considere própria e independentemente do regime jurídico que lhe corresponda (público ou parcialmente privado.)”(7) Vale dizer que o Código Penal adotou, tanto no artigo 327 do Código Penal, quanto no novo artigo 337-D, o critério orgânico de classificação dos servidores públicos, embora essa classificação seja amplamente criticada pelos tratadistas do Direito Administrativo pátrio(8), é a adotada pela legislação brasileira a partir do Decreto-Lei n.º 200, de 25/2/1967. Embora o art. 1.º, item 4, alínea “a”, do Dec. Presidencial n.º 3.678, de 30/11/2000, conceitue funcionário público estrangeiro, essa definição, por ser mais abrangente que a incorporada ao Código Penal, deve ser considerada meramente exemplificativa, sem qualquer força vinculante. Qualquer outra interpretação desse dispositivo, ofende frontalmente ao princípio constitucional da legalidade ou da reserva legal (art. 5.º, inc. XXXIX, da Constituição Federal e art. 1.º do Código Penal), pelo qual a norma que venha a definir crimes, cominar sanções ou prejudicar de qualquer forma o réu, deve ter origem em lei em sentido formal, não sendo aceitável qualquer outra forma de manifestação legislativa.(9)

O elemento normativo do tipo transação comercial internacional presente nos artigos 337-B e 337-C do Código Penal é de relevância ímpar em face do grande destaque destes pactos no cenário internacional. São portadores, muitas vezes, de interesses antagônicos, frutos de elaborados relacionamentos internacionais que envolvem tanto o Direito Internacional Público quanto o Direito Internacional Privado em sua vertente econômica. Neste tipo de acordo é comum a intervenção das mais altas autoridades do Estado e podem existir cláusulas que limitem a soberania do Estado, pondo a transação internacional, por exemplo, ao abrigo de mudanças legislativas.(10)

Embora os elementos constitutivos do tipo dos novos artigos 337-B e 337-C incorporados ao Código Penal sejam praticamente os mesmos dos previstos nos artigos 332 e 333 do Código Penal, são, na verdade, crimes independentes (também chamados delictum sui generis) e “não se confundem com variações típicas qualificadoras ou privilegiantes, porque possuem seu próprio conteúdo típico.”(11) Por outro lado, os parágrafos únicos desses novos artigos modificam seus limites, prevendo quantidades fixas de aumento da pena que estabelecem marcos distintos para o cálculo da pena-base(12). Portanto, referidos parágrafos comportam circunstâncias classificadas como qualificadoras. Na primeira hipótese (parágrafo único do artigo 337-B), a pena é agravada em ?(um terço) se o funcionário público estrangeiro efetivamente retarda ou omite o ato ao qual estava obrigado em razão da transação comercial internacional ? prevê-se uma punição maior para o autor quando o delito ultrapassa o campo da mera conduta do delito previsto no tipo básico e o dano ao Estado nacional efetiva-se também através da conduta dolosa do funcionário público estrangeiro. Na segunda hipótese (parágrafo único do artigo 337-C), o delito qualificado tem aumentada a pena em 1/2 (metade) em face do agravamento da conduta do sujeito ativo do delito, que alega ou insinua que a vantagem é também destinada a funcionário estrangeiro, atentando contra a credibilidade do Estado estrangeiro. Referidos parágrafos são lex specialis,vez que, pelo acréscimo de características ligadas à produção do resultado e ao modo de execução, modificam os tipos penais básicos.

A lei nova também acrescentou o inciso VIII ao rol do artigo 1.º da Lei n.º 9.613/1998 que trata da ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores, que, direta ou indiretamente, tenham origem criminosa, para incluir os delitos praticados por particulares contra a Administração Pública estrangeira.

Por fim, tendo sido a lei aprovada para dar cumprimento à Convenção de Paris, da qual o Brasil é signatário, passam seus delitos a figurar na competência criminal da Justiça Federal.

Contudo, se é certo que o tratado ou a convenção internacional eleva tais crimes a uma condição especial, a ponto de passarem a ser julgados pela Justiça Federal, também é correto pressupor que, para que o processo e julgamento de tais condutas tenha essa relevância e distinção, é indispensável a cooperação internacional em seu combate(13). Assim, em face da adoção da teoria pura da ubiqüidade(14) pelo nosso ordenamento jurídico, compete a Justiça Federal processar e julgar tais crimes “quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente [iniciada no estrangeiro, seu resultado tenha ou devesse ter ocorrido no Brasil]” (art. 109, inc. V, da Constituição Federal). Se todas as etapas do delito (iter criminis) se desenvolverem unicamente no Brasil ou no exterior, em face da adoção pelo nosso sistema jurídico-penal do princípio da universalidade ou da justiça mundial(15), será aplicada a lei nacional, mas a competência será da Justiça Estadual(16).

NOTAS

(1) Manzini apud COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, Parte Especial.Saraiva: São Paulo, v. 3, 1989, p. 436.

(2) BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5ª ed.. Brasília: Edunb, v. 1, 1993, p. 291.

(3) Acerca do crime de corrupção ativa praticado por particular contra a Administração Pública nacional, com outras informações ver PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. RT: São Paulo, v. 4, 2001, p. 548-555.

(4) Acerca do crime de tráfico de influência praticado por particular contra a Administração Pública nacional, ver PRADO, Luiz Regis. Ob. cit., p. 541-547.

(5) “É importante destacar que os elementos constitutivos do tipo se entrecruzam, de modo que os elementos objetivos podem ser descritivos (coisa), ou normativos (alheia); igualmente, elementos subjetivos também podem ser descritivos (o dolo) ou normativos (a intenção de apropriação, na expressão para si ou para outrem do furto).” – SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 38.

(6) “… o Direito Administrativo de cada país possui a feição que lhe confere o respectivo Direito Constitucional, razão que serve de advertência contra a ingenuidade de pretender extrapolar noções recolhidas em Direito alienígena para aplicá-las, acriticamente ao Direito Administrativo brasileiro.” – MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed., refundida, ampliada e atualizada até a Emenda Constitucional n.º 35, de 20.12.2001. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 26.

(7) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit., p. 137.

(8) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit., p. 136-8.

(9) PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 3ª ed., revista, atualizada e ampliada. RT: São Paulo, v. 1, 2002, p. 142.

(10) HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 4ª ed.. São Paulo: LTr, 2002, p. 247.

(11) SANTOS, Juarez Cirino dos. Ob. cit., p. 44.

(12) PRADO, Luiz Regis. “O injusto penal e a culpabilidade como magnitudes graduáveis”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 7, n. 27, p. 141-2, jul/set 1999.

(13) CARVALHO, Vladimir Souza. Competência da Justiça Federal. 3ª ed., atualizada e ampliada, Juruá: Curitiba, 1998, p. 377.

(14) Ver por todos, PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 3ª ed., revista, atualizada e ampliada. RT: São Paulo, v. 1, 2002, p. 167-8.

(15) PRADO, Luiz Regis. Ob. cit., p. 166.

(16) Art. 7.º, inc. II, alíneas “a” e “b”, do Código Penal: Art. 7.º. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: (…) II ? os crimes: (…) b) praticados por brasileiros.

Magno K. Nardin

é bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá, analista Judiciário na Vara Federal Criminal de Maringá, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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