Costa do Marfim

Acabo de receber de Abidjan, capital da Costa do Marfim, a mensagem de um amigo: “Estamos bem, apesar das constrições, das explosões dos canhões, das salvas de kalashnikov, do medo de ser levado por esquadrões da morte, a qualquer hora da noite, por não se sabe que motivo”.

É a Côte d?Ivoire, país pacífico até dois anos atrás, que o “pai da pátria” Felix Houphouët-Boigny não admitia que fosse chamada em outro idioma. Uma vez, na Alemanha, numa ceia oficial, viu que era identificado em alemão como presidente da “Elfenbein Küste”. Rasgou o bilhete, declarando: “Esse não é o meu país”; e exigiu que fosse trocado por outro, em francês, seu idioma oficial, com o nome certo.

Maior produtor de cacau – também à custa do que é produzido em Gana e contrabandeado, mas na África as fronteiras ainda são muito elásticas – o país era invejado pelos que achavam que tinha “decolado”. Seus tecnocratas, com os de Senegal, eram o creme dos dirigentes dos organismos e bancos internacionais da região. Ainda o são. O presidente da Organização da União Africana é Essy Aymara, que serviu como secretário na Embaixada da Costa do Marfim em Brasília, nos anos 70, com o primeiro embaixador no Brasil Seydou Diarra – me tornei cônsul honorário a seu irrecusável pedido, éramos amigos havia dez anos -, e foi depois embaixador junto à ONU em Genebra. Diarra é diretor do BEAO, o Banco da África Ocidental.

O fato de que nenhuma das mais de quarenta etnias que povoam o país fosse hegemônica e que o poder moral – e político – de Houphouët-Boigny dominasse sem contrastes o país, favoreciam essa imagem de equilíbrio, apesar das contradições sociais, dos grupos de oposição que se organizavam (e até eleitoralmente começavam a se inserir no processo institucional), do descontentamento nas universidades e nos sindicatos, das dificuldades econômicas crescentes, dos efeitos da longa crise mundial, etc.

Falecido Houphouët-Boigny, isso não iria durar e, depois de alguns trancos ainda controláveis, veio o golpe de outubro de 2000, causado pela cassação de várias candidaturas à eleição à Presidência da República, sobretudo de Ouattara, já primeiro-ministro, agora acusado de ser estrangeiro e, portanto, inelegível. De lá para cá, golpes e contragolpes se sucederam, houve o bloqueio das negociações iniciadas em Lomé, raros momentos de estabilização, e a multiplicação das frentes abertas pelas diversas facções que vão se definindo.

A França, potência ex-colonial, que mantém 2.500 homens do seu exército no país, mostra certa determinação em contribuir para que a situação acabe numa solução capaz de salvar a economia e os interesses locais e dos investidores estrangeiros, já seriamente prejudicados. Mas é improvável que a intensificação da presença militar francesa – mais 300 homens e material bélico está desembarcando no país – ajude a atingir esse objetivo. A duração da tensão e do conflito fez com que grupos armados se juntassem aos militares rebeldes e iniciaram o que já se pode definir como guerra civil. Mercenários parecem ter chegado a pedido do governo. Interesses por ora indefinidos vêm se juntar aos que já opõem o Norte muçulmano ao Sul cristão – o que parecia impossível até a morte do velho “pai da pátria”, pois este absorvia os atritos no âmbito do governo – e aos contrastes étnicos de diversas regiões do país. Sem contar que se inserem no contexto traficantes de armas, narcotraficantes de trânsito – são muitos os africanos mulas presos no Brasil – e que a tragédia marfinense tem conseqüências internacionais porquanto era um elemento estabilizador da região e a sua eventual islamização só pode aumentar a tensão e a violência. A preocupação é grande, as reuniões dos presidentes do Senegal, de Burkina Faso e da Costa do Marfim em Dacar tratam do assunto, mas a situação precisa de mais intervenções.

O governo brasileiro tem um papel nesse contexto. Brasil, Senegal e Costa do Marfim foram no passado os mediadores da descolonização portuguesa na África e intermediários no processo de democratização da África do Sul. O Brasil é muito respeitado na região. Não deveria se abster de oferecer seus bons ofícios de mediador. O Brasil e a Costa do Marfim são os maiores produtores de cacau do mundo e sempre tiveram uma política comum. O fato que a atual crise de produção e exportação do cacau marfinense faça aumentar o seu preço no mercado não justifica o desinteresse da nossa diplomacia pelo que lá está acontecendo. Haja vista que, apesar de tudo, graças à iniciativa da nova embaixadora, Colette Lambin Gallié, uma missão de cooperativas de cultivadores de cacau veio iniciar contatos para adquirir tecnologia e equipamentos para a industrialização das favas de cacau.

Mário Lorenzi é ex-cônsul geral honorário da República da Costa do Marfim, demissionário a partir do golpe militar de outubro de 2000.

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