Código Civil: lei nova e velhos problemas

Vive o Brasil a partir de 11 de janeiro de 2003 sob a vigência da Lei 10.406. Ao introduzir o novo Código Civil brasileiro, é legítimo indagar sobre os efeitos reais e possíveis de uma necessária hermenêutica construtiva das relações jurídicas na família, na propriedade e nos contratos para os velhos problemas enfrentados no País.

É certo que a validade dos negócios e atos jurídicos constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil fica submetida às leis anteriores, mas os efeitos, diante da incidência imediata e geral da nova lei, ao novo Código se submetem.

A questão que se coloca é a de saber que mudanças práticas efetivas irão ser operadas na tríplice base que sustenta o Estado e a própria sociedade.

Sabe-se que quem contrata não contrata mais apenas com quem contrata, e que quem contrata não contrata mais apenas o que contrata; há uma transformação subjetiva e objetiva relevante nos negócios jurídicos. O novo Código traz a função social do contrato e os princípios de probidade e boa-fé. A jurisprudência e a doutrina futuras dirão se terão sido capazes de informar relações contratuais mais equânimes, justas e razoáveis, num País vincado por desigualdades materiais e concretas que arrostam qualquer intenção legislativa.

Além disso, de há muito o Brasil clama por uma impostergável reforma agrária que dê conta da redistribuição de terra, renda e crédito. No que concerne à propriedade imobiliária rural, o novo Código condiciona o seu exercício às finalidades econômicas e sociais, com preservação da flora, da fauna, do ar, das águas, e do patrimônio histórico e artístico. Prevê, ainda, uma privação do direito de propriedade se o imóvel reivindicando consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, considerada pelo juiz de interesse social relevante. Nada obstante, é pela atuação efetiva do Estado, mediante desapropriação por interesse social, que as áreas socialmente improdutivas serão destinadas à produção que combata a fome de terra e de justiça fundiária.

De igual modo, a observação social dos fatos nas relações familiares revela dados novos, como as famílias monoparentais, as uniões entre pessoas de mesmo sexo, a filiação socioafetiva, num horizonte que revaloriza a família desatando alguns nós. Clama-se, e não é de agora, por um direito de família que veicule amor e solidariedade. Para isso, o novo Código não nasce pronto; ao contrário, nessa matéria faz rebrotar estigmas como a culpa na separação e nos alimentos. Em verdade, uma lei se faz código no cotidiano concreto da força construtiva dos fatos, à luz da uma interpretação conforme os princípios, ética e valores constitucionais. Será no porvir que a sociedade brasileira poderá nele ver uma família aberta e plural, até porque não pode haver família plenamente justa numa sociedade escancaradamente injusta.

O grande desafio é superar um velho problema, a clivagem abissal entre a proclamação discursiva das boas intenções e efetivação da experiência. Esse dilema, simploriamente reduzido ao fosso entre a teoria e a prática, convive diuturnamente na educação jurídica. Compreendê-lo corresponde a fazer de uma lei instrumento de cidadania na formação para o Direito, nas salas de aulas e de audiências, no acesso democrático ao Judiciário, e nos espaços públicos e privados que reclamam por justiça, igualdade e solidariedade. Naquilo que apresenta de positivo, ainda que não seja tudo o que se almejava para a nova lei, queira a hermenêutica construtiva do novo Código Civil contribuir para que o Brasil não chegue ao final do século XXI com os pés atolados na baixa Idade Média.

Luiz Edson Fachin

é pprofessor titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPR, autor da “Teoria Crítica do Direito Civil” (Ed. Renovar) e da “Função social da posse e a propriedade contemporânea” (SAFabris), entre outras obras.

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