Cinco a zero

Depois de mais de duas horas de conversa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as principais lideranças do Movimento dos Sem-Terra, o capo dei capi João Pedro Stédile saiu comemorando: “A reunião foi ótima, vai dar cinco a zero contra o latifúndio no segundo semestre”. Como latifúndio entenda-se tudo quanto o MST considera possível de servir à luta proposta que, no fundo, não é exatamente a reforma agrária: é a reforma do sistema. O cinco a zero, portanto, pode também ser pelo bloqueio de rodovias, pelo assalto a caminhoneiros que transportam comida e outras mercadorias, pela tomada de prédios públicos, usinas e, dentre outras coisas, de fazendas produtivas e bem estruturadas, já que a nova ordem condena assentar migrantes nas áreas consideradas “fronteiras agrícolas”.

Mesmo e apesar de sair do encontro satisfeito (e não deveria estar?) por estar convencido de que o presidente Lula tocará a reforma agrária, Stédile, como resumindo o pensamento dos outros companheiros, reiterou claramente que as invasões vão continuar. Até porque o presidente Lula, camarada, deles não pediu nem exigiu trégua. Pelo contrário, colocou o boné do MST na cabeça como quem veste a camisa de uma causa, comeu docinhos e aceitou uma bola com a qual não fez embaixadas diante das câmeras apenas porque o protocolo não permite. E se o “companheiro” presidente está conosco, quem será contra? Longe dali, comandados dos interlocutores escolhidos a dedo, o desrespeito à ordem instituída continuava com invasões, de um lado, e com o armamento de milícias particulares, por parte de fazendeiros agora mais do que nunca preocupados com o futuro de suas propriedades.

A imagem da Presidência ficou maculada, analisava logo depois o presidente da Confederação Nacional da Agricultura, o fazendeiro Antonio Ernesto de Salvo. Segundo ele diz, não se esperava uma recepção hostil do presidente aos sem-terra em Palácio, mas pelo menos que fosse mais austera, como o tema e o momento exigem. Com tanta afabilidade (o melhor seria intimidade), o governo transformou-se no parceiro mais importante da lógica de um conflito cuja tendência é a de recrudescer.

Se o presidente recebe em Palácio os dirigentes de uma entidade que formalmente sequer existe, e que opera ao arrepio dos ditames da legislação vigente, como haverá de se comportar com os que, do outro lado, têm a seu favor não apenas as leis e normas em vigor, mas se sentem no direito de fazê-las valer a qualquer custo? É este o desafio a que de agora em diante estará subordinado o presidente Lula, mesmo que venha a receber fazendeiros e latifundiários que já se movimentam para criar o constrangimento e tirar a prova dos nove.

Às reivindicações apresentadas, pelo menos daquilo que se ficou sabendo da reunião, o máximo que Lula fez foi advertir os líderes do MST para o fato de que não existe dinheiro para tocar tudo no ritmo imaginado (o movimento – e não o governo – já fixou como meta o assentamento de um milhão de famílias até 2006). Poderia ter dito isso sem a malsinada reunião com a banda da cidadania brasileira que abertamente conspira contra a ordem e faz troça dos direitos alheios, chegando ao assalto a mão armada. Não para dramatizar ainda mais o que já dramático está, mas o que aconteceu é qualquer coisa parecida com a hipótese de o presidente receber em Palácio a turma do Beira-Mar e com ela trocar confidências e algumas gargalhadas. O cinco a zero de Stédile pode ser visto como contra a autoridade presidencial.

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