Caso Suzane e o aborto de seu protesto

Entre os recursos privativos da defesa, temos o protesto por novo Júri, previsto nos arts. 607/608 do CPP, sendo esse recurso, como o próprio nome sugere, exclusivo da instituição do Tribunal do Júri.

Referido recurso pode ser utilizado por apenas uma vez e desde que a sentença prolatada pelo Juiz Presidente condene o acusado por um crime – não vale a somatória de penas decorrente de concurso material, – seja ou não da competência originária do Júri, à pena reclusiva de no mínimo 20 anos ainda que, no caso de existir concurso de infrações, a pena do outro crime seja inferior àquele limite, ocasião em que a defesa poderá interpor o protesto por novo Júri com relação ao crime que o comporta e, simultaneamente, para evitar o trânsito em julgado, também interpor apelação com relação àquele crime que não comporta o protesto em razão de a pena ser inferior a 20 anos.

Assim, exemplificando, se A é levado a Júri por homicídio e estupro, sendo aí condenado, respectivamente, às penas de 20 anos de reclusão e 6 anos de reclusão, seu defensor poderá interpor o protesto por novo Júri com relação ao homicídio e apelação com relação ao estupro, sendo que este último recurso ficará sobrestado até que o acusado seja submetido a um novo julgamento determinado pelo protesto.

O protesto por novo Júri é cabível não só em relação ao crime doloso contra a vida (homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto), mas também ao que lhe seja conexo (roubo, estupro, ocultação de cadáver etc.), desde que obedecido o requisito da condenação de no mínimo 20 anos de reclusão, conforme STJ 5.ª T.; HC n.º 24.732-SC; Rel.ª. Min.ª. Laurita Vaz; j. 24/08/2004.

De outra parte, fincou-se na doutrina e na jurisprudência sólido e pacífico entendimento de que se a quantidade de condenação a 20 ou mais anos de reclusão é obtida em concurso formal ou crime continuado (arts. 70/71 do CP), satisfeito está o requisito para que o réu propugne pelo protesto por novo Júri (STF – HC n.º 68.661-3 – Rel. Sepúlveda Pertence).

Interessa-nos de perto a continuidade delitiva, uma vez que ligada umbilicalmente ao caso Suzane von Richthofen/irmãos Cravinhos e que suscitou inúmeros debates entre leigos, especialistas de várias disciplinas e principalmente entre os operadores do Direito. Restou nitidamente claro que o duplo homicídio triplamente qualificado foi perpetrado em flagrante continuidade criminosa, subsumindo-se portanto na hipótese descrita no art. 71, parágrafo único, do CP.

Com efeito, abandonando entendimento antes sufragado pela Excelsa Corte, a reforma operada no ano de 1984 na Parte Geral do atual Código Penal admitiu a continuidade delitiva, também na ofensa de bens jurídicos personalíssimos, como vida, honra, pudor, liberdade etc., na dicção do parágrafo único de seu art. 71 (RSTJ 78/345). Por outro ângulo, na exposição de motivos de mencionada reforma, ficou assente que se adotava o critério puramente objetivo para o reconhecimento dessa continuidade delitiva, isto é, bastava para sua configuração que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, praticasse dois ou mais crimes da mesma espécie e que pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devessem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, refutando-se assim o critério objetivo/subjetivo, ou seja, dispensando-se pesquisar se o agente agiu ou não com unidade de desígnios ou propósitos, certo que o Código abraçou a unidade ficta.

Dessa forma, na condenação de Suzane von Richthofen, cujos argumentos se estendem aos irmãos Cravinhos, onde ela experimentou a pena reclusiva de 19 anos e 6 meses para cada uma das vítimas, seus pais, totalizando a pena, em face da regra do concurso material, de 39 anos de reclusão, acrescida de mais 6 meses por conta do crime conexo de fraude processual, a sentença fez vistas grossas ao instituto da continuidade delitiva, a despeito de estar bem delineada no processo à toda prova, quiçá objetivando, como é mais comum, evitar um novo e demorado embate oriundo do protesto por novo Júri, quando dever-se-ia tomar uma das penas dos dois homicídios – a mais grave ou qualquer delas se iguais, – aumentando-se-a de pelo menos 1/6, o que satisfaria o requisito objetivo de uma condenação de no mínimo 20 anos em continuidade delitiva pelos dois homicídios, proporcionando-se aos acusados o recurso de protesto por novo Júri.

De qualquer sorte, embora abortado na sentença condenatória, isso não elide que mencionado recurso seja novamente fecundado em grau recursal, onde, reconhecida a continuidade delitiva, implicará no retorno do processo e conseqüente realização de novo Júri dos acusados, uma vez ainda que não mais vigente o § 1.º do art. 607 do CPP, sabido que revogado pela CF de 1946 e também pela Lei n.º 263/48, conforme RSTJ 71/237, RT 748/593 e HC n.º 74.633-1-SP – D.J.U. de 11-4-97, p. 12.189.

Romualdo Sanches Calvo Filho é tribuno do Júri, professor e autor.

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