Carta para Maria Thereza

1. Explicação

Um grupo de estudiosos e profissionais das áreas penal, processual penal e penitenciária, reuniu-se no dia 25 de abril, no escritório do advogado Arnaldo Malheiros Filho, em São Paulo. O objetivo foi a organização de idéias para um plano nacional de reação intelectual de trabalhadores e estudiosos das aludidas ciências contra determinados projetos em tramitação urgente no Congresso Nacional e que mutilam princípios e regras do sistema criminal vigente em favor de uma legislação de pânico. Ao fundo dessa escalada que procura combater a violência do crime com a violência da lei, recrudesce o discurso político e se aviventam os rumos na direção de um direito penal do terror.

Conforme o registro de Luís Guilherme Vieira, estavam presentes os seguintes colegas: Arnaldo Malheiros Filho, Alberto Silva Franco, Sônia Ráo, Dora Cavalcante, Flávia Rahal, Marcelo Leonardo, René Ariel Dotti, Jacinto Coutinho, Paulo Rangel, Luiz Francisco de Carvalho Filho, Roberto Podval, Maria Teresa Moura, Maurício Zanoide de Moraes, Márcio Bártoli, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Luis Fernando Pacheco, Eduardo Carnelós, Marco Antonio Nahum e Adriano Vanni. De pronto, houve a adesão das seguintes entidades ali representadas: IBCCrim, ICC, ITEC, IDDD, Curso de Especialização em Advocacia Criminal da UCAM, Coordenação do Programa de Pós-Graduação da UFPR, IELF, ICP/MG, dentre outros. Miguel Reale Júnior justificou ausência e encaminhou mensagem por e-mail acerca da necessidade de uma concentração de estudos sobre determinados projetos e a apresentação de pareceres correspondentes.

Foram aprovadas, entre outras, as seguintes sugestões:

a) a expedição de um telegrama ao ministro Márcio Thomaz Bastos subscrito pelos presentes, manifestando a preocupação com o açodamento dos trabalhos parlamentares e solicitando o empenho para ouvir a sociedade a respeito dos projetos e a designação de uma audiência para receber os membros do grupo.

b) a designação Movimento Antiterror como a única fórmula de linguagem que, sem eufemismo ou academicismo, possa denunciar a sensação de insegurança e o regime do medo oriundos dos projetos que pretendem substituir o devido processo justo , a execução humanitária das penas e a dignidade funcional dos operadores do sistema;

c) a elaboração de dois documentos de identificação do Movimento, de sua natureza, ideologia e objetivos. O primeiro e mais urgente, pelos colegas Arnaldo Malheiros Filho, Marcelo Leonardo e Luís Francisco de Carvalho Filho, para divulgação nos próximos dias; o segundo, a ser redigido por Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Paulo Rangel, Jacinto Miranda Coutinho, Dora Cavalcante e por mim, sob o formato de um esboço para receber a contribuição dos demais colegas, presentes e ausentes, e uma publicidade de grande alcance nos meios políticos, jornalísticos, sociais, acadêmicos e profissionais;

d) o estudo individualizado de cada projeto de lei para destacar os seus aspectos mais críticos e examinar a viabilidade de emendas ou alterações;

e) a organização, no Rio de Janeiro, de um evento específico sobre o Movimento, em local e data a serem definidos;

f) a indicação de um moderador, na pessoa do Professor Marcelo Leonardo;

g) a composição e instalação, pelo mesmo Doutor Marcelo Leonardo, de um endereço eletrônico e a sua circulação visando obter adesões.

2. A designação do movimento

Nos dias 11 e 12 de abril deste ano, reuniram-se em Salvador mais de 1.400 participantes de um congresso denominado Últimas teses das ciências criminais, promovido pelo Instituto de Estudos Luiz Flávio Gomes e pelo Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia. Uma das primeiras conferências foi a de Miguel Reale Júnior que, aliando as experiências da militância da advocacia criminal, da cátedra de Direito Penal e das funções de Secretário da Segurança Pública de São Paulo e Ministro de Estado da Justiça, fez uma gravíssima denúncia contra o projeto de lei que institui o chamado Regime Disciplinar Diferenciado, para presidiários considerados altamente perigosos, principalmente na parte em que prevê um isolamento celular diuturno e de longa duração. A autorizada crítica e as advertências de Reale Junior fizeram-me lembrar uma passagem do clássico de Dostoievski. Relatando as suas memórias do cárcere, na intensidade dos maiores sofrimentos, o imortal escritor disse que “o famoso sistema celular só atinge, estou disto convencido, um fim enganador, aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enfraquece-lhe a alma, amesquinha-o, aterroriza-o, e, no fim, apresenta-no-lo como modelo de correção, de arrependimento, uma múmia moralmente dissecada e semi-louca” (Recordações da casa dos mortos, p. 20).

No dia seguinte, ainda sob a forte impressão da denúncia de Reale Júnior, encontrei-me com o lúcido e intimorato Promotor de Justiça do Rio de Janeiro, Paulo Rangel – que também comunga dos mesmos sentimentos e das mesmas reações – e disse-lhe que já está em tempo de criarmos um Grupo Antiterror, isto é, a reunião de um número de professores, advogados, juízes, membros do Ministério Público, estudiosos e profissionais de outras áreas das ciências humanas, de jornalistas criteriosos e parlamentares sensíveis à necessidade de se elaborar uma Política Criminal e Penitenciária sem o recurso à legislação de emergência. Esse Grupo teria a finalidade de ponderar junto à sociedade, às universidades, ao Congresso Nacional e a muitos outros auditórios, de boa ou de má vontade, sobre a inutilidade das leis injustas e das leis nulas.

Ao pensar nessa designação, lembrei uma passagem da antológica lição de Giuseppe Bettiol quando trata das relações entre Direito Penal e Política, em O problema penal. Vale reproduzir: “Mais recentemente, porém, as relações entre direito penal e política têm sido entendidas no sentido de uma dissolução das categorias lógico-científicas do direito, numa praxe política que tudo arrasta e a cujo serviço tudo deve ser posto: isto conduz não só à negação do direito penal como ciência política, mas também a uma forma pura e simples de terror penal. Quando se fala de terror penal, não se deve crer que ele só se manifesta através das guilhotinas e dos pelotões de execução, porque também é terror uma leve condenação aplicada pelo juiz, quando ao seu arbítrio não se fixem limites precisos. Terror é sinônimo de arbítrio individual e judicial, ao passo que o direito penal começa onde acaba o arbítrio. Ele apresenta-se, historicamente, como uma luta contra o terror, como esforço para a libertação da aplicação de uma `discricionalidade’, em que só a oportunidade do momento servia de guia ao juiz” (…) “E se o direito penal é a libertação do terror estadual ou colectivo, ele é, também, libertação do terror individual, ou seja, da vingança privada”.

Realmente, como traduzir em outras palavras o que está sendo feito pelo Estado através do Congresso Nacional, da imprensa sensacionalista, dos juízes paralelos e de todos quantos pregam o discurso das penas cruéis e infamantes? Por acaso vamos dulcificar com palavras ou expressões o terror que ameaça os presidiários através do Regime Disciplinar Diferenciado, ou o acusado de homicídio que poderá sofrer a pena de 40 (quarenta) anos de perda da liberdade? Qual é o apelido cabível para esse fenômeno que perigosamente investe também contra os “advogados de bandidos” que, segundo um dos projetos mais recentes, devem declarar o quanto recebem de seus clientes para que o crime organizado seja melhor identificado e combatido? Qual é a palavra mais adequada para traduzir o sentimento de insegurança de algum suspeito que antes de uma indiciação formal já está sendo condenado pela mídia e com uma sentença inapelável porque transita em julgado no momento em que é proferida? Qual é a palavra de ordem de muitos parlamentares que desfilam nas CPIs senão o terror a pretexto de combater o crime organizado? O que fez Robespierre ao criar e conduzir os famosos Comitês de Salvação Pública senão o terror para assegurar o poder em nome da República e mandar para a guilhotina os “inimigos” da Revolução? E tudo aquilo sob o pálio da benfazeja Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada no dorso dos sentimentos de liberdade, igualdade e fraternidade, e soprada pelo ventos da esperança na Assembléia Nacional de 1789?

O terror sempre tem sido, ao longo da história da violência, a moeda que circula no mercado do medo. Quem tem medo do nome do Movimento?

Como chamar o expediente psicológico de intimidação de advogados através da escuta e interceptação telefônica dos diálogos com seus clientes? Como intitular a supressão da garantia de acesso, por parte do cidadão suspeito, aos dados e registros contábeis, bancários e telefônicos constantes de um processo de investigação rotulado com o carimbo de segredo de justiça, quando, antes e mesmo depois da negativa, essas informações já circularam em grandes veículos de comunicação de massa? Como apelidar esse procedimento de transmissão de dados “secretos” transferidos de escaninhos dos cartórios policiais e não raro das serventias da justiça para os editores dos grandes furos jornalísticos? Como chamar essa adesão da imprensa às violações éticas e que substituem o princípio da presunção de inocência pelo dogma da presunção de culpa?

É preciso dizer mais?

3. A mensagem da professora Maria Thereza

No domingo à tarde, dia 27, recebi mensagem eletrônica da professora na qual ela manifestava a sua grave preocupação com a iminência das votações dos projetos e alertava para a necessidade de se fazer alguma coisa. E depressa.

Surgiu, assim, o gancho para a resposta que lhe mandei como expressão de constrangimento, desabafo e de esperança. Eu me senti refém do pensamento autoritário e caminhante condenado para alimentar os fornos crematórios do processo penal garantista e dos princípios fundamentais da ciência penal num Estado Democrático de Direito. O texto, emoldurado com o título de Carta para Maria Thereza, é reproduzido em sua fidelidade vernacular e na reincidência das emoções. Ao fundo, ele é também uma homenagem à sensibilidade, ao talento e à coragem de nossa valorosa colega.

4. O texto da carta

“Curitiba, 27 de abril de 2003”.

Querida Professora Maria Thereza

Recebi a sua mensagem e a cumprimento, muito sensibilizado, pela divulgação de meu texto-denúncia aos alunos da Universidade de São Paulo, reduto histórico de notáveis movimentos de liberdade nos campos da Literatura, da Ciência e da Arte. Não esqueço o discurso de Ruy Barbosa (“Oração aos moços”), redigido para a cerimônia de colação de grau da Turma de 1920, da Faculdade de Direito de São Paulo e da qual ele foi paraninfo. Eu a conheci com o entusiasmo juvenil e me enterneci com a experiência dos anos. Queira, por gentileza, transmitir aos seus alunos a minha afetuosa homenagem.

Compreendo a sua preocupação sobre a necessidade de fazermos alguma coisa antes que o Congresso Nacional consume o atentado contra liberdades, direitos e garantias de Direito e Processo Penal, numa espécie de erupção que promete, com suas lavas, enterrar no fogo da destruição muitos princípios que ao longo dos anos foram elaborados pela sensibilidade jurídica da boa experiência e do humanismo possível. Não sei se o cataclisma é evitável porque ele é, em grande medida, impulsionado por forças da natureza humana e social da população, principalmente das grandes cidades, iludida com as mentiras oficiais e que, tateando no pesadelo, procura enfrentar o cenário da criminalidade violenta e organizada com a criação de novos deuses. Em sua antológica Origem da tragédia, Nietzche nos conta que os gregos, para fugir dos horrores da tragédia, conceberam em sonho os deuses olímpicos…

Sei, porém, que se os ventos dessa mudança (para pior) não puderem ser desviados para se evitar a erupção teremos, agora, logo mais e sempre, também forças para tentar refazer os caminhos, as lavouras, as casas, a vida e a cultura das cidades temporariamente reduzidas a cinzas.

É certo que teremos muitas vítimas; é certo que ouviremos falar dos pobres que não podem ter a inocência reconhecida ex-officio pelo sistema ou de outros acusados que não têm defensores competentes para livrá-los do inferno do RDD que o eufemismo legiferante apelidou de Regime Disciplinar Diferenciado mas que, na verdade, indica o codinome do Regime Da Desgraça, que também poderá ser conhecido como o Regime Da Desesperança; é certo que teremos a frustração de ler a Constituição e ver o descompasso do cotidiano dos processos e das prisões; é certo que sentiremos a impotência por não sermos ouvidos por muitos membros do Parlamento que são surdos e cegos à voz e à luz da razão e do bom-senso mas que ouvem e enxergam pelos sentidos da mídia sensacionalista; é certo que continuaremos a ver muitos órgãos de comunicação social, por um lado, glamourizar o criminoso em destaque do dia, e, por outro, a violentar o princípio da presunção de inocência; é certo que os juízes paralelos e os comitês de salvação pública continuarão com o discurso político que ignora as reais causas da criminalidade e a omissão dos governos para inflamar a tese do recrudescimento das penas; é certo que não temos o poder de influência junto às instâncias formais e aos escaninhos do poder político; é certo, também, que não podemos tampar essa Caixa de Pandora para evitar a propagação dos males que ela anuncia para o sistema criminal.

Se tudo isso e muito mais é verdadeiro, também

é certo que estamos compulsivamente determinados a lutar contra a legislação de pânico;

é certo que a nossa rebelião está sendo filtrada na mente e no coração de muitos colegas e companheiros em todo o País;

é certo que os furacões, os terremotos e os vulcões jamais devastarão a reserva de intimidade de nossa consciência e muito menos a alma de nossa luta;

é certo que continuaremos a pensar e dizer como pensamos e falamos;

é certo que teremos ouvidos e olhos para a nossa prece de resistência;

é certo que teremos juízes, tribunais, cátedras, púlpitos, gabinetes de trabalho, jornais, livros, salas de aula, fóruns acadêmicos e profissionais, além de cantos da cidade e mesas de bar e outros lugares para sustentar os fundamentos de nossas idéias e recitar a poesia da nossa esperança;

é certo que teremos o apoio de desconhecidos militantes da boa razão e o coro de uma grande variedade de Organizações Não Governadas, que serão as novas ONGs, não corrompidas pelo silêncio dos omissos ou a cumplicidade dos áulicos;

é certo que diremos a nossa palavra com o entusiasmo que também alimenta as boas causas, com a paixão lúcida que fermenta as boas revoluções e com a esperança que no dizer do Padre Antonio Vieira “é a mais doce companheira da alma”;

é certo que nossos endereços eletrônicos serão invadidos pelo congestionamento da solidariedade, vindos de muitos lugares e carregados pelos espíritos sem preconceitos;

é certo que tudo isso e algo mais não pode ser impedido ou castrado pela ameaça do fato consumado e pela crônica do terror anunciado que tremulam nas bandeiras a meio pau das torres gêmeas do Congresso Nacional.

Em matéria de supressão e restrição de garantias e direitos de um processo que deveria cumprir o fundamento republicano de um Estado Democrático de Direito, uma grande legião de parlamentares fariam inveja, pela adesão à violência institucional e ao terror legislativo, a determinados ícones da ditadura militar. Lá como aqui a diferença está no continente; jamais no conteúdo. A pretexto de erradicar a subversão e a corrupção aquele regime instituiu o “ouro para o bem do Brasil” (que a saborosa observação de Millor Fernandes mostrou que o “para” da frase era do verbo “parar”. Agora as desgraças do País são a violência e o crime organizado. Em lugar dos IPMs (inquéritos policiais militares), utiliza-se o turíbulo da legislação de emergência. Em lugar do ouro para o bem do Brasil surge a lei para o bem da sociedade. Mas o verbo continua o mesmo.

Que Deus a abençoe, querida Irmã Maria Thereza, com o Seu manto que perdoa as ironias benditas e as iras santas. E que o mesmo Senhor dos humildes e desgraçados nos ilumine também.

Esteja certa, você e todos quantos estão do nosso lado: o movimento de resistência e luta contra o terror da legislação de pânico, se for preciso, irá durar mais que os 40 anos prometidos pelo Deputado Fleury para fazer da pena máxima da perda de liberdade um dos modelos de exportação do regime legal anunciado como o paraíso da segurança e o inferno dos criminosos neo-hediondos. E irá para muito além da vida finita dos arautos dessa nova caminhada em favor da prisão prometida. Eles são os apóstolos da aritmética do cárcere por acreditarem que a soma dos anos de confinamento de um ser humano poderá render o produto da segurança da população.

Cordialmente,

René Ariel Dotti”.

René Ariel Dotti

é professor titular de Direito Penal; presidente do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP); ex-membro de comissões de redação de projetos de reforma do sistema criminal; advogado.

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