Canção para os fonemas de alegria

Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente para desfraldar
este canto de amor  publicamente.

Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo
azul das estrelas
que meu peito floresce de menino.

Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano,
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,

e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas
são mágicos sinais
que vão se abrindo
constelação de girassóis girando
em círculos de amor
que de repente
estalam como flor no chão da casa.

Ás vezes nem há casa: é só chão.
Mas sobre o chão quem
reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:

porque unindo pedaços
de palavras
aos poucos vai unindo
argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor.

e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre
num clarão

que o mundo é seu também,
que o seu trabalho
não é a pena que paga
por ser homem,
mas um modo de amar e de ajudar

o mundo a ser melhor.
Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um
homem novo:

ele atravessa os campos
 espalhando
a boa-nova, e chama
 os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte,

contra o bicho de
quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar
soletrando a canção rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que
eu vi crescer
nos olhos do homem
que aprendeu a ler.

Santiago do Chile,verão de 1964 MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto – porque a manhã vai chegar. Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

Voltar ao topo