A ansiedade de Marina e de seus dois filhos, Orlando e Noel, dissipou-se num sorriso triste, expressão de alívio e gratidão, quando os três índios apontaram na rampa do Hall Monumental da Assembléia Legislativa de São Paulo, onde estava sendo velado o corpo de Orlando Villas Bôas.

Eram 23h15. Umas 50 pessoas conversavam baixinho, ao lado da urna, que chegara duas horas antes, com algum atraso, do Hospital Israelita Albert Eisntein, na zona sul de São Paulo.

Os índios não entraram logo no saguão. O cacique Raoni e os guerreiros Megaron e Bepcom, que vieram de avião de Brasília com o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Artur Nobre Mendes, ficaram parados por alguns minutos na rampa, olhando de longe a urna ladeada de quatro velas acesas, entre as bandeiras do Brasil e de São Paulo. Marina, Orlando e Noel foram ao encontro dos caiapós.

“Perdemos nosso pai”, repetiam Raoni, Megaron e Bepcom, abraçando a mulher e os filhos do sertanista Orlando Villas Bôas, como se estivesem consolando parentes queridos. Os índios enxugavam as lágrimas com um lencinho de papel, que passavam de um para outro, sem nenhum constrangimento por chorar. Os médicos Roberto Baruzzi e Rubens Belfort, voluntários em dezenas de expedições entre os índios, pela Escola Paulista de Medicina, juntaram-se ao grupo.

Cinco minutos depois, Raoni soluçava ao lado do caixão, passando a mão direita na testa do velho amigo com quem conviveu durante tantos anos no Parque Nacional do Xingu. De cocar de penas amarelas na cabeça, colar vermelho no peito e um saliente botoque no lábio inferior, o cacique apertava as mãos de desconhecidos, repetindo frases de saudade e adeus.

“Orlando me ensinou a língua portuguesa, e o seu irmão Cláudio também. Quando eu entendi o português. Ele contou a história dele e eu contei a história dos índios. Sempre trabalhamos juntos para o meu povo no Xingu. Ele e Marina tratavam dos índios doentes e, quando um índio passava mal, ele mandava trazer para São Paulo…” Misturando português com a língua dos caiapós, Raoni resumiu nessas palavras uma comovedora relação de mais de 50 anos de solidária amizade.

Sertanistas, médicos, ecologistas, funcionarios da Funai, companheiros de expedições e parentes, todos só falavam da paixão dos irmãos Villas Bôas pelos povos indígenas. “Impossível imaginar o Orlando sem uma gargalhada”, observou Rubens Belfort, olhando o corpo do amigo coberto de crisântemos brancos. Rosto sereno, as mãos um pouco roxas cruzadas sobre o peito, parecia que Orlando Villas Bôas morreu sorrindo.

Vestia uma camisa xadrez azul e um pulôver cinza, a roupa que mandou buscar em casa, quando ainda imaginava que fosse ter alta no hospital. A jornalista Sônia Cristina Jourdani  amiga da família, que preparou o corpo para o velório, colocou nos bolsos dele a caneta, o pente e um lenço, do jeito que ele gostava. A calça jeans, que os flores cobriam, era a que ele costumava usar de manhã cedo quando ia tratar das rolinhas e das tartarugas no quintal.

“Uns dez dias atrás, papai me pediu para inventar uma desculpa – que tinha de ir ao lançamento do livro O Xingu dos Villas Bôas, no dia 5 – para fugir do hospital”, contou o Vilinha, lembrando uma conversa com Orlando, quando ele deixou a UTI para o tratamento semi-intensivo, num período curto de melhora.

Logo depois, seu estado se agravou. Foi entubado no dia 6 e não teve mais consciência de nada.

Ao perceber que ia mesmo morrer, pediu à mulher e aos filhos que continuassem o trabalho dele. “Orlando morreu com a convicção de que fez tudo o que podia pelos índios e, pessoalmente eu acho que ninguém fez mais do que ele”, comentou Marina, companheira de luta do marido desde os anos 70, quando se conheceram no Xingu. Enfermeira, Marina começou cuidando de uma das 253 malárias do sertanista.

“Estou com o coração apertadinho, pois já tinha nascido e era amiga de Orlando fazia tempo, quando Marina se casou com ele”, disse Berta Nutels, filha do médico Noel Nutels, companheiro dos irmãos Villas Bôas na Expedição Roncador-Xingu. Berta, que veio do Rio na véspera, estava duas noites sem dormir  mas não queria deixar o velório.

Parecia que todos se conheciam. Os fotógrafos José Pinto e Pedro Martinelli recordavam aventuras das selvas com os médicos Belfort e Baruzzi. O secretário estadual de Comunicação, Luiz Salgado Ribeiro, que também acompanhou expedições dos Villas Bôas como repórter do jornal O Estado de S. Paulo lembrou as dificuldades que enfrentava para fazer suas matérias chegarem ao jornal.

O ambientalista Emílio Pereira Lopes acertou com a família uma cerimônia simbólica em homenagem a Orlando. Queria colocar sobre o peito dele o colar da Ordem do Congresso Nacional, criada pelo seu avô, o deputado federal Ernesto Pereira Lopes, para homenagear personalidades da história do Brasil. “Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek receberam essa homenagem”, informou.

Uma delegação da Escola de Samba Camisa Verde e Branco chegou com uma bandeira bordada do desfile do carnaval de 2000. “Sertanista e Indigenista, sim. Por que não Orlando Villas Bôas?” A presidente da escola, Magali dos Santos, falou da emoção de Orlando, quando sua epopéia foi exaltada no Sambódromo. Ele não parecia entender bem o enredo, lembrou uma amiga, mas de fato ficou muito contente.

A partir da 1h, uma guarda da Polícia Militar postou-se junto à urna. De 20 em 20 minutos, quatro cadetes da Academia de Barro Branco revezavam-se em posição de sentido, sob as ordens de um aluno-comandante. O governador Geraldo Alckmin determinou que Orlando Villas Bôas fosse velado e sepultado com honras militares. O presidente da Assembléia, Walter Feldman (PSDB), passou pelo saguão para apresentar os pêsames à família.

Depois que Marina e seus filhos se retiraram para repousar em casa, apenas um grupo de pessoas permaneceu no velório. O presidente da Funai, Artur Nobre Mendes, o sertanista Porfírio de Carvalho e mais três amigos ficaram conversando até às 4h30 sobre as aventuras e a importância de Orlando e seus irmãos no contato com os índios. Meia hora depois, quando a guarda de honra trocava de turno, eles também foram embora.

Duas mulheres, que haviam prometido a Marina aguardar a volta da família, ajeitaram uma flor vermelha na urna, sentaram-se na primeira fila de cadeiras vazias e passaram o resto da madrugada olhando, em silêncio, o rosto de Orlando Villas Bôas.

Enterro

O corpo do indigenista orlando Villas Bôas foi enterrado por volta das 16 horas no cemitério do Morumbi, zona sul de São Paulo após uma rápida cerimônia em que os caciques caiapó Raoni, Megaron e Bepcom, os três do Parque do Xingu, entoaram a música indígena preferida do amigo. Cerca de 50 pessoas entre familiares, pesquisadores, antropólogos e autoridades participaram da cerimônia de enterro.

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