“Brown” faz cinqüenta anos

“Brown v. Board of Education”, a célebre decisão proferida pela Suprema Corte norte-americana que pôs fim à segregação racial nas escolas públicas norte-americanas, fez, no dia 17/05/2004, cinqüenta anos.

A prática judicial vive de bons exemplos, sendo, portanto, importante lembrar a histórica decisão.

O caso foi ouvido na Suprema Corte, inicialmente sob a liderança do “Chief Justice” Fred Vinson, que defendia a manutenção do regime de segregação. Segundo memorando confidencial do juiz William Douglas, a Corte, por maioria de cinco votos contra quatro, inclinava-se a favor da segregação. A decisão foi, entretanto, adiada para o ano seguinte. Nesse interregno, Vinson faleceu, sendo substituído por Earl Warren, que logrou obter unanimidade dos juízes para condenar a segregação, reputando-a incompatível com o princípio da igualdade.

Saliente-se que o princípio da igualdade, “equal protection of the law”, havia sido inserido na Constituição norte-americana pela Décima-Quarta Emenda, de 1868, e que os então componentes do Congresso, que também editava leis para o Distrito de Columbia, no qual ficava a sede do Governo Federal, haviam, na mesma legislatura, adotado regime de escolas segregadas no referido distrito. Portanto, de acordo com a concepção dos autores da emenda, a segregação não era inconstitucional.

A Corte também teve que enfrentar o precedente “Plessy v. Ferguson”, de 1896, no qual a segregação nos transportes ferroviários havia sido reputada compatível com o princípio da igualdade, fazendo-o nos seguintes termos do voto de Warren:

“Na abordagem deste problema, nós não podemos voltar nossos relógios para 1868, quando a Emenda foi adotada, ou, ainda, para 1896, quando “Plessy” foi decidido. Nós devemos considerar a educação pública à luz de seu completo desenvolvimento e de seu lugar presente no modo de vida americano por toda a Nação. Só por este caminho pode ser determinado se a segregação nas escolas públicas priva os reclamantes da igual proteção da lei.” (LOCKHART, William B. et al. “Constitucional law: cases-comments-questions”. 18. ed., 18.ª ed. St. Paul, Minn.: West Pub., 1996, p. 1.173)

Warren, servindo-se de estudos psicológicos, dentre eles o famoso teste das bonecas, defendeu que a doutrina “separados, mas iguais”, estabelecida em “Plessy”, não tinha lugar em matéria educacional, pois a simples segregação comprometia o desenvolvimento educacional do grupo segregado:

“Separá-las [as crianças negras] de outras de idade e qualificações similares só em virtude da raça negra gera um sentimento de inferioridade de seu “status” na comunidade, que deve afetar seus corações e mentes de um modo que provavelmente não possa ser desfeito. (…) Qualquer que fosse a extensão dos conhecimentos psicológicos na época de “Plessy”, essa observação é amplamente amparada pelas autoridades modernas.” (LOCKHART, W. B. et al. Idem, p. 1173.)

Concluiu então que a segregação na educação era inerentemente desigual.

É oportuno destacar que a Corte não se limitou a reconhecer o direito dos demandantes de ingressarem em escolas reservadas a brancos. Tinham eles direito a escolas em regimes integrados, o que implicava a adoção de larga política pública de dessegregação, afetando, portanto, escolas e alunos não envolvidos diretamente no caso.

Por razões estratégicas, na decisão proferida em 17/05/1954 a Corte não estabeleceu como deveria ser implementada tal política de dessegregação. Aparentemente, o objetivo de Earl Warren era obter decisão unânime quanto ao princípio, evitando que discussões quanto à sua implementação viessem a prejudicar a unanimidade. No ano seguinte, após reargumentação, a Corte decidiu que ela deveria ser implementada pelas autoridades escolares, com a supervisão das instâncias federais inferiores, com toda a rapidez deliberada (“with all deliberate speed”). A fórmula de compromisso possibilitava, conforme as circunstâncias, alguma flexibilização quanto ao cumprimento do princípio, o que a Corte então reputou oportuno por temer reação maciça nos estados do Sul contra “Brown”.

Aliás, houve de fato reação, incluindo manifesto de noventa e seis congressistas do estados do Sul contra a decisão da Corte, isso em 12/03/1956 (cf. MARTIN JR., Waldo E. (Ed.) “Brown v. Board of Education: a brief history with documents”, Boston: Bedford/St. Martin’s, 1998, p. 220-223). A implementação de Brown em larga escala tornou-se viável apenas após a adesão dos demais ramos políticos ao princípio dessegregacionista, o que ocorreu somente na década seguinte, por exemplo com a Lei dos Direitos Civis, de 1964. Mesmo assim, foi Brown que forneceu o ímpeto para tais mudanças. Segundo o jornalista Anthony Lewis, do New York Post, Brown foi o “catalisador” da “revolução nas relações interraciais norte-americanas”, criando “um clima que encorajou o negro a protestar contra a separação de ônibus, a exigir ser servido em lanchonetes…” (CHOPER, Jesse H. “Judicial review and the national political process: a functional reconsideration of the role of the Supreme Court”, Chicago: University of Chicago Press, 1980p. 92).

Tão interessante quanto Brown é a implementação do resultado do julgado, o que provocou inúmeras controvérsias, bem como intervenções nos distritos escolares pelas instâncias inferiores e pela própria Suprema Corte, podendo ser citados exemplificadamente “Cooper v. Aaron”, de 1958, no qual o Governo Federal teve que enviar tropas federais para garantir o ingresso de estudantes negros na Little Rock School, no Estado do Arkansas, e “Swann v. Charlotte-Mecklenburg Board of Education”, de 1971, no qual a Suprema Corte manteve plano de dessegregação que envolvia inclusive a modificação do sistema de transporte escolar. A implementação de “Brown” ilustra a possibilidade de adoção de política pública de certa complexidade através do Judiciário, sempre que necessário para remediar situação incompatível com a Constituição.

Se “Marbury v. Madison”, de 1803, é a decisão mais célebre da Suprema Corte no século XIX, por inaugurar a jurisdição constitucional, “Brown” é a mais importante do século XX, inaugurando novo modelo de decisão judicial. A decisão da Corte envolveu: a) a proteção judicial de grupo social e politicamente vulnerável, por, dentre outros motivos, ser sub-representado nos órgãos parlamentares; b) a possibilidade de interpretação evolutiva da Constituição, ou seja, a possibilidade de conferir às normas constitucionais novas interpretações cf. a evolução dos fatos e da cultura de um povo; c) a utilização de recursos fornecidos por ciências não-jurídicas, em vista dos estudos psicológicos mencionados na decisão; e d) a ordenação de postura ativa por parte do Estado para o cumprimento da Constituição.

A decisão também chama a atenção por sua simplicidade, ressaltando o papel comunicativo da jurisdição constitucional. A Suprema Corte falava à Nação e não aos juristas.

A partir de “Brown”, a segregação racial existente em boa parte dos Estados Unidos foi progressivamente erosionada, contribuindo para o movimento dos “direitos civis” norte-americano. Aliás, decisões da própria Corte culminaram por concluir pela inconstitucionalidade da segregação em estabelecimentos públicos ou abertos ao público, bem como de leis estaduais racistas, como a que proibia o casamento inter-racial.

“Brown” é a mais importante decisão da famosa Corte Warren e ocupa lugar de honra no panteão das melhores decisões judiciais da história. Bons exemplos devem ser lembrados e, mais importante, seguidos.

Para quem quiser se aprofundar, a bibliografia citada neste artigo é um bom começo, notadamente “Brown v. Board of Education: a brief history with documents”, que contém relato de todo o caso, peças do processo desde a primeira instância e inclusive “charges” com a repercussão do julgado à época. A histórica decisão também ganhou as telas do cinema, com o telefilme “Separados, mas iguais”, que foi estrelado por Sidney Poitier e Burt Lancaster e que pode ser encontrado em algumas locadoras.

Sergio Fernando Moro

é juiz Federal da 2.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, autor dos livros “Legislação Suspeita? Afastamento da presunção da constitucionalidade das leis”, Editora Juruá, e “Desenvolvimento e efetivação judicial das normas constitucionais”, Editora Max Limonad.

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