Embora o avanço da vacinação contra Covid no país traga sinais de esperança, a ainda baixa cobertura vacinal (com duas doses) e a circulação da variante delta do coronavírus, mais contagiosa, chamam a atenção de especialistas, que já veem sinais preocupantes na taxa de ocupação de UTIs e na faixa etária dos hospitalizados.
Para Julio Croda, 43, infectologista e pesquisador da Fiocruz, o aumento das internações de pessoas acima de 80 anos torna imperativo aplicar uma dose de reforço nessa população, a primeira que foi vacinada no país, junto com os profissionais de saúde.
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Na última quinta (19), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que a aplicação de uma terceira dose da vacina só vai ocorrer depois que toda a população adulta tiver recebido as duas doses da vacina.
A fala do ministro, no entanto, vai de encontro ao que vem sendo feito em diversos países.
Croda defende que a dose de reforço para os idosos seja dada ao mesmo tempo em que a vacinação nas demais faixas etárias ainda está em curso.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, ele também falou sobre como garantir a segunda dose aos mais de 7 milhões de brasileiros que não completaram seu esquema vacinal e a virada de jogo causada pela variante delta.
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O Ministério da Saúde deveria priorizar hoje a aplicação de segunda dose nos adultos ou começar a aplicar uma terceira dose nos idosos e imunossuprimidos?
Julio Croda – O Brasil como um todo possui um ritmo de vacinação bastante desigual; há estados que já avançaram muito do ponto de vista de aplicação da primeira dose [D1], e a grande maioria dos estados já aplicou a segunda dose pelo menos nos idosos acima de 60 anos. Mas o ideal seria garantir a segunda dose de todas as pessoas acima de 50 anos antes de começar a avançar nos mais jovens, antes da antecipação da segunda dose nos mais jovens. É importante entender por que 7 milhões de pessoas ainda não foram tomar a segunda dose, principalmente os idosos, e buscar essas pessoas antes de avançar nos adolescentes, por exemplo.
Apesar de termos no Brasil uma cobertura vacinal para idosos acima de 65 anos alta, de 91%, como fazer para que essas pessoas busquem a segunda dose?
JC – Em termos de cobertura, 91% é muito bom, mas o ideal é chegar acima de 95%, principalmente nesse grupo. Nesse sentido, o que deve ser feito é a nível municipal, junto às equipes de atenção primária, buscar as pessoas que receberam D1, mas não a D2 [segunda dose], ir de casa em casa atrás desses indivíduos para aplicar a segunda dose.
Um estudo coordenado pelo senhor apontou menor efetividade da Coronavac em pessoas mais velhas, com a proteção contra Covid variando de 28% a 62%. O fato de a grande parte dos idosos com mais de 65 anos no Brasil ter recebido duas doses da Coronavac ainda no começo do ano preocupa?
JC – A questão da idade é para ontem, porque já estamos vendo um aumento de hospitalizações em alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, com a chegada da delta, principalmente nessa faixa etária. Se há agora a circulação de uma variante mais transmissível e já se observa o impacto nessa faixa etária, com as vacinas com uma efetividade menor, esse é um indicativo da necessidade de implementação de reforço o mais cedo possível.
O que não temos ainda são dados em relação ao aumento de pessoas imunossuprimidas hospitalizadas, então talvez os estados que já avançaram na vacinação nos adultos acima de 18 anos, já aplicaram D1 em todos acima de 18 anos, poderiam sim iniciar um esquema de reforço nos mais velhos, começando com as pessoas que completaram seu esquema vacinal há mais de seis meses, sem nenhum impacto na campanha de vacinação dos jovens e adolescentes.
No caso dos imunossuprimidos, o governo norte-americano aprovou a aplicação de uma terceira dose não como um reforço, mas sim como esquema normal de vacinação.
JC – É importante diferenciar isso: uma 3ª dose de esquema vacinal que seria para os imunossuprimidos, e uma dose de reforço para toda a população, começando pelos mais velhos, seis meses após a aplicação da segunda dose. Como no Brasil a campanha de vacinação iniciou em janeiro, já temos algumas pessoas, principalmente aquelas acima de 90, 80 anos, que já passaram seis meses desde a segunda dose, e poderia começar por aí.
O mecanismo biológico é o mesmo, há uma diminuição na resposta imunológica em relação ao esquema vacinal habitual tanto nos imunossuprimidos quanto nos idosos. A queda é tanto nos anticorpos neutralizantes [capazes de bloquear a entrada do vírus nas células] quanto de efetividade, mostrando essa diminuição na proteção. Não significa necessariamente uma proteção mais baixa para formas graves, mas esse é um indicativo que faz pensar que, ao longo do tempo, com essa queda de efetividade, seja necessária uma dose de reforço.
Qual seria a principal dificuldade de começar a aplicação de 3ª dose sem antes concluir a 2ª na população adulta?
JC – O impacto no PNI seria mínimo, porque são apenas 4 milhões de pessoas acima de 80 anos e imunossuprimidos, com um número ainda menor de profissionais da saúde acima de 60 anos. A dificuldade do ponto de vista prático, no caso dos imunossuprimidos, é a determinação do Ministério da Saúde de quem são essas pessoas, quais são as condições que entrariam na classificação de imunossuprimido.
Os chamados casos de escapes vacinais parecem ser mais recorrentes em pessoas mais velhas, não havendo assim tantos casos em indivíduos mais jovens e, quando há, eles são em geral mais leves?
JC – Com certeza. Existe um levantamento que mostra claramente que em indivíduos com duas doses da vacina que foram parar no hospital e eventualmente morreram, 96% são pessoas acima de 60 anos.
E em relação à vacinação de adolescentes, é muito cedo ainda para pensar na imunização desse grupo?
JC – A vacinação de adolescentes tem como foco principal diminuir a transmissão e o risco de infecção para os técnicos, para os professores, para os funcionários das escolas ficarem seguros na volta presencial. É importante entender que o contexto de alguns estados, como RJ e SP, é de aceleração da delta, com aumento de hospitalizações e óbitos em um público que não é de crianças e adolescentes, e mesmo assim temos uma série de estados que começaram a vacinação nesse grupo e não avaliam o reforço nos idosos.
Entender o contexto do país como um todo, que a gente pode avançar na imunização dos adolescentes ao mesmo tempo que não podemos deixar de lado a terceira dose nos idosos, é fundamental, e cabe a cada gestor otimizar as doses que recebe e avaliar qual a melhor estratégia. O que não tem sentido é privilegiar os adolescentes, porque na prática estamos vendo o aumento de hospitalizações nas pessoas acima de 60 anos.
Com a vacinação das faixas etárias mais velhas próxima de ser completada, ou pelo menos em grande parte completa para aqueles acima de 60 anos, a tendência é que a doença fique cada vez mais jovem?
JC – Essa era uma ideia no início, mas a delta bagunçou tudo, por ser mais transmissível e com um pouco mais de escape de resposta imune. À medida que a gente avança na vacinação para grupos etários mais jovens, a tendência é que ela se concentre nos idosos, associado a uma queda natural de anticorpos que ocorre ao longo dos meses. Assim, se você juntar esses três fatores em idosos, que já têm maior risco de hospitalização e óbito, que já apresentam uma resposta imunológica menor às vacinas, e que a delta ainda complica ainda mais, isso pode levar a um aumento substancial do número de casos, e sobretudo hospitalizações. E há dados claros demonstrando isso: entre os dias 6 e 12 de junho, na 23ª semana epidemiológica, os idosos representavam 27% dos hospitalizados e agora, entre 1˚ e 14 agosto, ou seja, dois meses depois, isso equivale a 44%.
E quanto aos profissionais de saúde, faz sentido uma dose de reforço nesse grupo?
JC – É importante entender que nesse momento é preciso ter mais doses de vacina para poder avançar. O pleito de dose de reforço nos profissionais de saúde é adequado, outros países já estão adotando isso, mas é preciso estratificar qual o risco, um profissional de saúde com mais de 60 anos tem risco maior do que um de 30. Pessoalmente, não vejo nenhum problema em revacinar os profissionais de saúde com mais de 60 anos após a injeção de reforço nos idosos e imunossuprimidos.
Apesar do avanço da vacinação, é prudente agora pensarmos em retomada de serviços e encontros, incluindo eventos esportivos com torcida e festas de casamento?
JC – É muito cedo, porque a nossa cobertura vacinal, principalmente de esquema completo, ainda é muito baixa. Comparando com o Reino Unido, por exemplo, que tem uma cobertura mais elevada de segunda dose para a população geral, houve um aumento expressivo de novos casos naquele país, ou seja, a vacina não foi suficiente para controlar infecções. Mas não ocorreu um aumento proporcional de hospitalizações e óbitos, o que mostra que as vacinas continuam funcionando para quadros mais graves da doença.
O problema é quando a flexibilização se baseia em uma conta de pessoas com D1, o que no contexto da delta muda totalmente. É preciso uma cobertura de D2 muito maior, principalmente nos grupos mais vulneráveis, uma vez que somente isso irá garantir a proteção para as formas graves da doença.
O sr. fazia parte do Centro de Contingência do coronavírus do governo de SP, que foi reduzido na semana passada pelo governador. Isso ocorreu em parte por pontos de vista contrários à reabertura? Faz parte do novo comitê científico mais enxuto?
JC – Eu não continuo no comitê. A decisão de dissolução foi do governador em diminuir a quantidade de pessoas que assessoravam por acreditar que a pandemia havia diminuído. Eu sou independente em tudo que falo e penso, o comitê também sempre foi independente nas suas posições, e espero que continue. Acredito que foi prematura a decisão de flexibilização total, essa foi uma discussão que tivemos no comitê, nós queríamos um outro indicador, como cobertura vacinal com duas doses mais avançada para iniciar esse tipo de flexibilização, e não apenas avanço de D1.
O coronavírus vai se tornar endêmico?
JC – Sim, e a variante delta veio para demonstrar isso. Todas as vacinas disponíveis, e é importante deixar isso claro, continuam com alta proteção contra internação e óbito, mas a perda de efetividade contra as formas moderadas faz com que o vírus continue circulando e, ao continuar sua transmissão, mais mutações vão ocorrer e novas variantes podem surgir. O que deve acontecer ao longo do tempo é que, com a vacinação e com o reforço vacinal, vamos conseguir impedir evolução para forma grave, mas não a circulação do vírus.
Foi assim na epidemia de H1N1. Essa imunidade adquirida não é capaz de impedir a circulação do vírus, não consegue controlar o surgimento de novas variantes, mas controla muito bem o risco de evolução para quadro grave associado à necessidade de hospitalização. O Sars-CoV-2 é muito recente ainda na população, se adaptou há menos de dois anos aos humanos. É natural que ele se torne endêmico e eventualmente, de tempos em tempos, outras epidemias importantes associadas a novas variantes devem ocorrer.
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Julio Croda
Natural de Salvador (BA), graduou-se em medicina pela Universidade Federal da Bahia, com residência em doenças infecciosas e parasitárias no Hospital das Clínicas da USP e doutorado em infectologia na mesma instituição, com um período de sanduíche no Instituto Pasteur, na França. Tem 43 anos, é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Foi diretor do departamento de imunizações e doenças transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde de 2019 a 2020.