Segredos russos

Polêmica vacina russa que vem ao PR teve laboratório militar, testes em cientistas e filha de Putin

Foto: Aniele Nascimento / Gazeta do Povo / Arquivo

Nesta quarta-feira (12), o governador Ratinho Jr (PDS) assina acordo para trazer ao Paraná a vacina Sputnik V, anunciada pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, nesta terça-feira (11) como a primeira imunização de covid-19 do mundo. A reunião virtual do governador com o embaixador russo Sergei Akopov às 14h desta quarta vai definir as condições para que a vacina seja testada, produzida e distribuída pelo Instituto Tecnológico do Paraná (Tecpar).

A Sputnik V – o nome é uma referência ao primeiro satélite enviado ao espaço pelos soviéticos – foi desenvolvida em apenas dois meses e sem a última etapa de testes que uma imunização deve passar antes de ser aplicada na população, o que vem gerando muitos questionamentos. A previsão é de que a vacina comece a ser produzida em setembro para vacinar a população russa em outubro.

O surgimento da Sputnik V está cercada de segredos. Os métodos como foi desenvolvida, com aplicação de doses nos próprios cientistas e prazo curto, levam a comunidade científica a questionar a eficácia.

O surgimento da vacina russa teve caráter militar. Custeada por 4 bilhões de rublos (cerca de R$ 300 milhões) pelo Fundo de Investimento Direto da Rússia (RDIF), a Sputnik teve colaboração direta do Ministério da Defesa da Rússia. Uma de suas unidades, o 48.º Centro de Pesquisas, participou do esforço liderado pelo Instituto Gamaleia, principal referência em microbiologia e virologia na Rússia.

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Mais chamativa ainda foi a participação do Centro Vektor. Criado em 1974, esse instituto era um dos responsáveis por pesquisas de armas biológicas soviéticas durante a Guerra Fria. Com laboratórios de segurança máxima, é um dos poucos lugares do mundo onde estão guardados exemplares do vírus da varíola.

Hoje, o Vektor faz parte do Serviço Federal para Vigilância de Proteção do Direitos do Consumidor e Bem-Estar Humano. O nome civil, segundo analistas russos, apenas dissimula seu caráter ainda militar.

Há também o lado tecnocrático. O RDIF assumiu toda a divulgação dos esforços do Gamaleia, e não o Ministério da Saúde, ao qual o instituto é subordinado. O site da vacina foi lançado nesta terça-feira sob sua supervisão, com traduções em sete línguas – inclusive o português, já que o Brasil é um mercado-alvo do produto, como prova o acordo com o governo do Paraná. As conversas com outros países, como os Emirados Árabes, também passaram pelo fundo.

Próprios cientistas testaram

A primeira notícia acerca de uma vacina russa ocorreu em maio, quando o diretor do Gamaleia, Alexander Ginzburg, revelou em uma entrevista ao Ministério da Saúde russo que havia testado o imunizante em si mesmo e em outros pesquisadores. Ao anunciar a vacina nesta terça, o presidente russo Vladimir Putin afirmou que sua própria filha já tomou uma dose da Sputnik V.

A prática, amplamente condenada no Ocidente, gerou polêmica. Os detalhes vieram a conta-gotas, ao longo dos meses: 40 voluntários, metade deles das Forças Armadas, começaram a ser testados em junho.

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A chamada fase 1 acabou e os russos, considerando os resultados satisfatórios, pularam direto para a fase 3 – só que, em vez de fazer amplos testes, querem começar a vacinação em massa e acompanhar os resultados. Em entrevista ao canal Globo News, o diretor presidente do Tecpar, Jorge Callado, afirma que o Paraná fará a terceira fase de testes da Sputnik V antes de aplicar a vacina na população.

“É um começo em que buscamos intercâmbio de informações. E só avançaremos se tivermos informações.Como instituto tecnológico, temos que estar abertos a novas tecnologias. Prudência e segurança são palavras-chave nesse processo”, reforça Callado, afirmando que a vacina russa só será aplicada no Paraná se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprová-la.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), entretanto, já disse que não tem detalhe sobre como a vacina foi produzida. Logo não a recomendará por ora.

A confiança na segurança do imunizante soa exagerada, mas segundo o diretor do RDIF, Kirill Dmitriev, se baseia no fato de que a vacina combina elementos testados em “milhares de pessoas” ao longo de seis anos, em vacinas contra o ebola e a Mers – uma doença prima da Sars, mais mortífera.

O laboratório de onde saiu a vacina

Dmitriev também se vacinou, e disse que teve resposta imune e nenhum efeito colateral. Por heterodoxos que sejam os métodos de Ginzburg, desde 1997 à frente do Gamaleia, o centro é uma instituição da medicina russa. Foi criado em 1891, em Moscou, para as incipientes pesquisas bacteriológicas da época, pelo médico Filipp Blumenthal (1859-1927).

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Em 1919, após a Revolução Russa, o laboratório foi nacionalizado pelos comunistas no poder. Ao longo dos anos, diversos outros centros foram sendo incorporados a ele, até se tornar o Instituto Central de Epidemiologia e Microbiologia, em 1931. Durante a Segunda Guerra Mundial, após a invasão alemã da União Soviética em 1941, foi quase todo transferido para longe das linhas de frente, em Kazan, Alma-Ata e Sverdlovsk.

Em 1949, morreu o pai da microbiologia russa e de programas de vacinação, Nikolai Gamaleia. Ele, que havia trabalhado diversas vezes com o instituto, passou a emprestar seu nome à instituição – prática comum na Rússia, onde até o metrô de Moscou tem um nome, no caso, do líder soviético Vladimir Lênin (1870-1924).

Programas extensos de vacinação passaram por lá e, a partir de 1966, o Gamaleia passou a focar mais em pesquisa pura. De lá saíram descobertas como a relação entre vírus e tumores, diagnóstico por quimioluminescência e o desenvolvimento da droga interferon.

A desconfiança internacional sobre a pesquisa médica russa, evidenciada pelos prazos exíguos da Sputnik, nem sempre foi assim. Mesmo no início da dura rivalidade da Guerra Fria, a União Soviética mantinha cooperação com os norte-americanos, seus adversários ideológicos.

A Rússia, ainda integrante da União Soviética, foi o primeiro país a testar a hoje popular vacina da gotinha, que previne a poliomielite, entre os anos de 1958 e 1959. O virologista Mikhail Tchumakov (1909-93) trabalhou em conjunto com o americano Albert Sabin (1906-86) para a criação da vacina oral contra a poliomielite. Porém, os Estados Unidos, que torciam o nariz para a pesquisa da gotinha, só reconheceram o imunizante três anos depois, em 1962.


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