O servidor e a greve

Incita-me o colega Alexandre, que é aluno do Cefet, a escrever algo sobre a greve dos servidores públicos, de há muito prometida e de pronto realizada. Na verdade, ele está sem poder freqüentar as aulas de reposição da última greve, neste mês de julho. Período que deveria não ter aulas por causa das férias, mas acabou tendo, quer dizer, agora já não tendo, não por conta das férias, mas da greve… da outra greve. Enfim, juntos novamente estão o servidor e a greve. A pergunta que paira é sempre a mesma: será que adianta alguma coisa?

Bom, talvez não adiante, mas atrasa. A reforma não sai tão rapidinha, como esperava o governo, que não acreditava em uma reação tão contundente. E, ainda, tinha forte esperança de conquistar um apoio maciço da “sociedade privada”, que não veio. As pessoas estão sentindo que há algo de errado, em que pese o apoio incondicional da mídia (a não tão velha, porém ótima, companheira do poder). Já são admitidas mudanças no pecado, digo, projeto, original do governo, que de trator passou a rastelo. O governo está sofrendo o efeito estranho e irritante da democracia, e pior (para ele) da democracia participativa, tão em voga na retórica da atualidade, mas bem se sabe, sempre indesejável aos governantes, que nestes momentos recorrem, ainda que de forma esdrúxula, à Constituição. Observo que a imprensa está debatendo a constitucionalidade da greve, e, com certa angústia, que nosso caríssimo professor Carlos Ari Sundfeld defende a ilegalidade da greve, em oposição a, vejam só!, Ives Gandra Martins. O argumento pela inconstitucionalidade é a ausência de previsão legal da mesma para os servidores, que reputo, com todo o respeito, ser absolutamente inapropriado. E neste ponto, tenho que concordar, ainda que a contragosto, com Ives Gandra, pois a greve é direito social inafastável do trabalhador, seja estatutário ou celetista. E sendo direito fundamental, mesmo não regulamentado, tem respaldo constitucional. A inércia legislativa não pode ser desculpa para a obstaculização de um direito desta natureza.

A greve, ou, como alguns preferem, somente “paralisação”, é um direito, e mais que isso, é um instrumento de luta política que não pode ser ignorado ou desrespeitado. Por certo que muitas vezes não dá em nada, quando não somente prejudica os cidadãos que necessitam dos serviços. Mas se todos soubessem o resultado final de suas batalhas, elas não seriam travadas e o homem não seria sujeito de seu destino. Contudo, felizmente não estamos, creio, na Idade Média. Pierre Burdieu bem colocava que os movimentos sociais não precisam de justificativa para existir, sua simples existência já é eficiente. Inclua-se nesta assertiva a greve dos servidores, que tem uma peculiaridade interessante: é geral, o que é bastante incomum na contemporaneidade, caracterizada pelo individualismo sectarista. E é eficiente mesmo que seja parcial, embora o governo, como sempre, faça pouco caso do fato. O Secretário de Planejamento, Luiz Fernando da Silva, afirmou que pararam entre 30% e 40% dos servidores, o que, segundo ele “não é um número desprezível, mas também não é muito grande”. Ora, na média dos números do governo, certamente subestimados, 35% de quase um milhão de servidores é um percentual bem significativo, quando não, altamente simbólico.

Mas pensando no cerne do problema: que complicado! Quanto mais se estuda e lê sobre os tais benefícios, menos se sabe. Parece que só é simples para o governo. Leio na Folha de S. Paulo o Ministro Palocci afirmar: “Se qualquer um de vocês olhar as contas dos principais Estados sobre previdência e da União vocês vão chegar à simples conclusão de que essas contas estão ao longo do tempo insustentáveis”. Qualquer um quem??? Eu, infelizmente, não. Primeiro porque somente entender as contas já é muitíssimo difícil. Pessoalmente, eu duvido que ele mesmo realmente entenda, pois o assunto deve ficar por conta de seus assessores, que são os técnicos especializados na área. Segundo, porque, mesmo que fosse muito fácil compreender as contas públicas, por certo que não seria nada simples prever o futuro da previdência. E digo isto com certa tranqüilidade, pois não foram poucos os que já fizeram previsões semelhantes a do Ministro. Já faz no mínimo 13 anos que o Estado vai quebrar por causa da previdência e, até agora, a única ameaça real veio dos especuladores internacionais, que quebraram com o México, a Argentina e o Uruguai.

O professor europeu Pierre Rosanvallon muito bem ressalta que há algumas décadas passadas ninguém ousaria afirmar que as despesas e tributos atingiriam o nível atual sem uma quebra do Estado, sendo que, no entanto, estes níveis são constantemente ampliados. Diz o especialista: “… em 1926, Keynes escrevia uma carta aberta ao Ministro das finanças francês, na qual considerava impossível `do ponto de vista político’ que as despesas públicas pudessem atingir um quarto do rendimento nacional. É longa a lista de todos os economistas que, de Léon Say, no século XIX, a Colin Clark, no século XX, consideraram estruturalmente insuportável para o sistema um novo crescimento das despesas sociais. Cada um deles via os `limites’ do Estado-providência, já atingidos, quando eles, de fato, não cessavam de recuar.”

A partir destas conclusões desisti de entender a previdência a partir dos números, até porque há dados bem contraditórios nesta seara, como pude observar dos estudos do “Fórum Permanente das Entidades Representativas do Fisco em Minas Gerais” (somente para citar uma entidade de especialistas na área). De qualquer forma, prefiro avaliar o assunto pelos pontos de vista jurídico, ético e, quem sabe, extra-sensorial. Sobre o jurídico já me pronunciei dia desses, sobre o ético prefiro me abster, pois, como diria a prosaica mãe do Bambi, se não tenho nada de bom pra dizer, é melhor ficar calado. Então, só me resta fazer uma ponderação sobre minha opinião sensitiva. E lhes digo: acho que os servidores têm mesmo é que fazer muito barulho. E não será por nada, pois há algo de errado, como pareceu-nos haver algo de estranho com o já sobrestado reajuste dos telefones. Mas o que tem a ver uma coisa com outra?

Na realidade, os assuntos se comunicam. Neste último final de semana, a colega Professora Andréa Lopes exortou-me a manter o celular desligado, como manifestação contra o reajuste dos telefones. Mas, respondi, ainda que equivocado, o reajuste é só da telefonia fixa. Ela, prontamente, contestou: “Não interessa, o importante é protestar!” Outra colega, a quem vou dar o benefício do anonimato, logo ponderou que não iria adiantar nada. Minha conclusão foi que eu deveria desligar, primeiro porque meus poderes extra-sensoriais me diziam que algo está obscuro nestes reajustes e que alguém está lucrando com a desgraça do povo; e, segundo, porque, se realmente não adiantar, não seria por minha culpa. Assim, ao menos, eu me livro da condenação eterna. Ademais, posso até estar enganado (ou me enganando), mas pelo simples fato de participar de uma ação coletiva, já sinto um certo gostinho de vitória, com sabor de democracia real.

Com a greve ocorre o mesmo. É péssima, quando não bastante triste, mas se tornou o único instrumento democrático de manifestação de uma categoria morimbunda. Pode não dar em nada, e muitos vão repetir esta dedução efusivamente, como no caso de todas as reações contra os ditos “fatos inevitáveis”. Podem, ainda, até estarem errados os servidores, pois, ao contrário do que pensa o governo Lula, a certeza não é privilégio de absolutamente ninguém e a obviedade não existe em termos de políticas públicas. Mas o simples fato de existir, já é importante. E, neste ponto, não devemos nada às mais desenvolvidas democracias do mundo. Resta saber se o governo vai negociar, como gente grande, ou vai continuar esbravejando contra o exercício da democracia. Neste contexto, tentemos ser compreensivos, pois, em termos de reforma do Estado, o outro de hoje pode ser o eu de amanhã.

Emerson Gabardo

é mestre em Direito do Estado pela UFPR, coordenador geral de pós-graduação do Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar e professor de Direito Administrativo da UniBrasil. e.gab@uol.com.br

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