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Escolas propõem aulas sobre mídia e fake news

Em um projeto pedagógico de educomunicação, esta reportagem seria discutida assim: a ideia do texto partiu de uma reunião de pauta, foi apurada e escrita por um repórter após conversas e pesquisas, as imagens foram registradas por fotógrafos de acordo com os contextos, um editor organizou a forma mais apropriada de encadear as informações e, por fim, o resultado pode visto em papel e na internet.

Analisar os bastidores de como se produzem informações e não apenas a mensagem em si é uma das atividades da educomunicação, também conhecida como Alfabetização Midiática e Informacional (AMI). Trata-se de uma proposta que estuda como os veículos de produção e transmissão de informações operam, para fomentar o pensamento crítico dos alunos em relação às mais diversas mídias.

Embora o termo tenha surgido em meados da década de 1970, o atual milagre da multiplicação da informação – são 3 bilhões de usuários em redes sociais – mostra como o tema é urgente nas escolas. Dados do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) alertam que fake news têm 70% mais chance de “viralizar” do que notícias verdadeiras. As mentiras mais compartilhadas são sobre política, mas também se destacam temas como terrorismo, desastres naturais, ciência e informações financeiras.

“Primeiro, precisamos conscientizar nossos estudantes sobre a existência das fake news. Depois, mostramos como são construídas e, por fim, mostramos como eles podem checar se uma informação é confiável ou não”, explica Marcelo Milani, coordenador de Tecnologias Educacionais do Colégio Humboldt, localizado na zona sul de São Paulo.

Por lá, os alunos do ensino médio participam de um projeto sobre manipulação de informações. A partir da seleção de notícias falsas que ganharam destaque na rede, os educadores mapeiam os recursos e os truques usados para a construção das fake news. Foi tema de estudo, por exemplo, a falsa notícia de que graviola cura câncer. “Ao entender como é o processo, nosso aluno consegue se proteger”, resume Marcelo.

Neste mundo polarizado, afirmam os educadores, ensinar a proteger-se de fake news é também estimular a busca pela informação verdadeira – mesmo que essa não endosse algum ponto de vista individual – e o respeito pela diversidade de opiniões.

Por isso, uma das estratégias pedagógicas para abordar a educomunicação é propor uma análise constante das múltiplas abordagens sobre os assuntos. “O desafio do professor que trabalha o estudo da mídia é fazer uma boa curadoria, levar vários pontos de vista para oferecer elementos para o aluno formar o próprio senso crítico”, explica Verônica Martins Cannatá, coordenadora de tecnologia educacional do Colégio Dante Alighieri.

Por lá, os alunos do ensino fundamental e médio participam de uma oficina que transformou um ônibus escolar em estúdio móvel. Com ele, os alunos vão para as ruas, encontram as pautas e depois produzem as notícias.

“Depois que comecei nesse projeto, vejo as notícias de outra forma. Consigo entender melhor o que as reportagens falam. E, além disso, percebi que passei a ler muito mais”, conta Tiago Fares Menhem, de 11 anos, estudante do 6.º ano. Como seu principal interesse é a produção visual – ele se interessa por técnicas de fotografia e captação de vídeos -, o aluno fez a cobertura de alguns eventos da escola, como a feira de ciências e uma arrecadação de alimentos para imigrantes.

Em tempo de polarização e de descrença da imprensa, o projeto do Dante propõe um olhar mais analítico. “Ao botar o estudante como produtor de conteúdo, ele entende o processo e refina sua avaliação sobre o que merece ou não credibilidade. O professor tem a tarefa de fazer essa articulação”, afirma Verônica.

Programa premiado

Com objetivos claros e ferramentas simples, um projeto de educomunicação pode ser implementado em grande escala. Em São Paulo, a rede municipal de Educação criou em 2015 o programa Imprensa Jovem. Atualmente, 200 escolas de ensino fundamental da cidade têm uma agência de notícias.

“Produzimos matérias com assuntos de interesse dos estudantes, principalmente com temas que tenham a ver com os locais em que vivem”, explica o professor Carlos Alberto Mendes de Lima, coordenador da proposta. Cada escola tem ao menos 20 estudantes que se dedicam dez horas semanais ao projeto. Os educadores envolvidos recebem capacitação específica, como cursos de rádio, fotografia e leitura crítica da mídia.

A proposta chamou a atenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que convidou Lima a apresentar o projeto no Global Media Information Literacy Week 2019, evento neste mês em Gotemburgo, na Suécia. Uma das ações abordadas será a da escola Dr. Afrânio de Mello Franco, no extremo sul da capital.

Lá, os alunos desenvolveram um jornal, disponível em formato impresso e digital, organizado em várias colunas com assuntos de interesse da comunidade escolar. Os temas vão de corriqueiros, como dicas de filmes, a mais complexos, como o combate a situações de assédio. Como em uma redação comum, são feitas reuniões de pautas e definidos quem serão os repórteres para escrever as matérias, os fotógrafos e os responsáveis pela produção dos vídeos.

Todos partem para o trabalho depois de terem participado de oficinas sobre técnicas de produção jornalística. E, como se espera de um bom veículo de comunicação, a liberdade de expressão é garantida. “Posso escrever sobre tudo, até mesmo fazer críticas à escola”, conta Monique Sampaio da Silva, de 14 anos, aluna do 8.º ano do ensino fundamental. “Recentemente, por exemplo, fiz uma matéria sobre a necessidade de investir em mais acessibilidade para cadeirantes.”

O tema escolhido por Monique – um problema local – reflete uma realidade que também é global e indica que o senso crítico da estudante está afiado para dar conta do que está por perto e do que vem sabe-se lá de onde, neste mundo em que as notícias se multiplicam e se espalham, principalmente as falsas.

3 PERGUNTAS PARA
Vitor Blotta, professor doutor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

1. Quais são os benefícios da educomunicação?

De forma mais ampla, o próprio fortalecimento da democracia. Para que tenhamos garantida a participação, precisamos ter uma boa comunicação dos direitos em espaços sociais e canais de mídia e, ao mesmo tempo, garantir o acesso a informações produzidas pelas agências estatais, escolas e governos. Nas escolas, a educomunicação oferece a possibilidade de requalificação dos ambientes, para fomento da cidadania. Algumas graduandas do curso de Educomunicação da USP e eu atuamos em uma escola na qual havia ocorrido vazamento de fotos íntimas de uma estudante. Fizemos oficinas de cidadania digital, abordando a propagação de dados. Discutimos a questão dos direitos e produzimos um vídeo sobre cyberbullying com os alunos.

2. Quais são os próximos passos a serem dados?

Acho fundamental conhecer os modos de produção de informação e circulação das mídias mais acessadas, com transparência sobre os usos de dados. Seria um direito conhecer os algoritmos. Sem entrar no aspecto da programação, mas de entender como essa tecnologia usa nossos dados. Assim, poderíamos exigir das empresas e do poder público políticas claras que coibissem a violação de direitos e privacidade. Conhecer a forma de processamento de informações é uma forma muito efetiva para compreender a diferença entre informações com erros e as realmente enganadoras.

3. Quais são as melhores formas de explicar fake news?

Acho interessante não fazer somente atividades sobre checagem e crítica da mídia. Há questões sobre verificar as fontes, éticas e técnicas jornalísticas que precisam ser socializadas com os estudantes. Em vez de só refutar informações falsas, é importante estabelecer iniciativas de produção de novas histórias e relatos em proximidade com a pesquisa científica. Para os alunos, isso pode significar levar em conta histórias de vida, formação dos bairros, conhecimento de história e de direitos em contextos locais.

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