Alfabetização para todos: um grito de guerra

Pode ser surpreendente dedicar atenção ao analfabetismo no Brasil. Conforme a pergunta de Koichiro Matsuura, diretor-geral da UNESCO, a questão da alfabetização universal não deveria ter sido resolvida no século passado?

O analfabetismo está comprometendo o futuro do Brasil. Nos vários Brasis persistem pessoas que não têm oportunidades adequadas para alfabetizar-se. Com o analfabetismo freqüentemente enraizado nas circunstâncias da pobreza, em áreas rurais e urbanas, não se pode esperar que esse grupo de excluídos caminhe para a morte, a fim de que se reduza a sua presença nos indicadores estatísticos. A sua exclusão é um fato que não pode ser ignorado. Trata-se daquela privação terrível para a qual não se pode fechar os olhos. Por isso, o Brasil precisa engajar-se plenamente na Década da Alfabetização das Nações Unidas, que começa este ano e se estende até 2012.

O tempo e os desafios são dinâmicos. Desde a criação da UNESCO, ao terminar a Segunda Guerra Mundial, verificam-se mudanças expressivas no conceito e no modo de conceber a alfabetização. Esse é o espelho das complexas relações entre educação e sociedade, que interagem entre si, em rua de mão dupla e tráfego intenso, num turbilhão acelerado de mudanças.

No pós-guerra, concebia-se a alfabetização como a capacidade de ler, escrever e fazer cálculos aritméticos. Alunos adultos eram tratados como crianças na prática da sala de aula e o currículo podia ter ou não conexões com a vida cotidiana. Era uma educação em grande parte dissociada da sua circunstância, como se o aluno fosse uma criança que havia simplesmente perdido as oportunidades educacionais e pudesse ser introduzido numa espécie de máquina do tempo para recuperá-las.

No entanto, a perspectiva da alfabetização cresceu como uma árvore, tanto para baixo como para cima. Numa direção, ela vitalizou-se, envolvendo competências e habilidades que a vida social exigia cada vez mais. Noutra direção, aprofundou as suas raízes para integrar-se e diversificar-se segundo as condições e necessidades dos alfabetizandos.

Hoje, as raízes da árvore são mais profundas, ao mesmo tempo em que se encontra uma profusão de ramos para atender ao leque de diversidades que enriquecem o processo educacional. Se as nossas possibilidades de resposta cresceram, com novos recursos, também aumentou o tamanho do desafio. Temos, assim, uma corrida em que não há lugar para lamentar o tempo perdido, mas em que se pode perceber que teria sido mais simples responder antes aos desafios.

A criação da Década da Alfabetização pelas Nações Unidas coincide com um fato histórico da vida nacional. Pela primeira vez, depois de tantas lutas, o Brasil elegeu um presidente da República que veio do povo, que pode fazer o enlace entre as aspirações e problemas dos vários Brasis, edificando nessa matéria-prima a plataforma de uma nova sociedade, mais justa e mais humana. Dessa forma, a Década da Alfabetização no Brasil, pelas condições políticas favoráveis, representa historicamente a grande oportunidade para o país resgatar uma dívida secular.

O mesmo povo que elevou um líder operário à posição mais alta na hierarquia do Estado brasileiro precisa agora assumir um papel protagonista na batalha para erradicar o analfabetismo, indignando-se por um lado com os elevados índices de analfabetismo e, por outro, fazendo da alfabetização para todos um grito de guerra, para que o Brasil não perca essa oportunidade histórica. E se isso for mais uma vez adiado, poderá ser tarde demais…

Cristovam Buarque

é ministro da Educação e Jorge Werthein é representante da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil.Informativo Rede de Cristãos.

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