A primeira pedra

A recente e pesada crítica da ONU ao salário mínimo no Brasil, contida em documento de seu Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e a observação de que persiste no País uma “extrema desigualdade social”, bem como impunidade, não representam qualquer novidade para os brasileiros. Surpreende, por outro lado, o fato de as Nações Unidas, no mesmo documento, manifestarem preocupação com a “ampla e profunda” discriminação em relação à população negra e indígena”. Coincidência ou não, no final de maio, a TVE, da Espanha, exibiu para o mundo um documentário sobre a questão da discriminação de cor e raça no Brasil.

As observações da ONU e da TV espanhola à questão da discriminação não procedem. Poucas são as nações em que, como no Brasil, convivem em harmonia, solidariedade e paz, numerosas etnias, credos, imigrantes e seus descendentes. A tese da discriminação racial, que às vezes prevalece em certas correntes de pensamento do País, não resiste à análise da realidade. Assim, a sua exportação como modelo de interação de nossa sociedade apenas contribui para deturpar a imagem nacional no Exterior. A sociedade brasileira é estratificada, sim, mas predominantemente em função da perversa concentração de renda, cuja correção ainda desafia a Nação.

Assim, pode-se concentrar a análise do documento da ONU à questão socioeconômica relativa às condições de vida de milhões de brasileiros, que vivem abaixo ou pouco acima da chamada linha da miséria. Culpa significativa por essa situação encontra-se, efetivamente, nos equívocos verificados no plano interno, em 503 anos de história oficial. Igualmente, não podemos nos omitir na autocrítica quanto aos problemas atuais e à incapacidade do Brasil de realizar as necessárias reformas constitucionais, de realizar uma política econômica mais equilibrada entre as metas de controle da inflação e crescimento e de ingressar no círculo virtuoso do desenvolvimento. A Nação tem consciência de seus problemas.

Por outro lado, o Brasil não é um planeta e tampouco uma ilha. É um país inserido num contexto mundial. E neste universo, globalizado a partir dos anos 90, somente têm aumentado a concentração regional das riquezas, a miséria do Terceiro Mundo e a pobreza dos países emergentes, como demonstra, aliás, relatório do próprio Banco Mundial. Assim, a lição de casa para a redução dos contrastes, da estratificação social indevidamente taxada como preconceito e para a melhoria das condições de vida e inclusão não está restrita ao mea culpa de cada país. Trata-se de uma questão também global.

As barreiras protecionistas Å tarifárias e, é importante frisar, não tarifárias Å, os subsídios à produção industrial e agrícola e o dumping social disfarçado sob a indignidade de salários aviltantes, práticas ainda muito presentes nos países industrializados e em grande nações asiáticas, também estão diretamente ligados à pobreza e à exclusão nos emergentes e subdesenvolvidos. Da mesma forma, o desprezo de nações ricas por tratados como o Protocolo de Kioto e compromissos como o da erradicação da miséria e preservação das florestas alinha-se dentre os obstáculos atuais ao desenvolvimento sustentado. Aparentemente, todos os benefícios e melhoria da qualidade de vida atrelados ao ideário da globalização e da sociedade pós-industrial transformam-se em privilégios regionais e não direitos universais.

Assustador é constatar a crescente impotência dos organismos internacionais, como a própria ONU e a Organização Mundial do Comércio (OMS), na mediação entre os povos, na busca da paz e na justiça do comércio exterior. Nós, Brasil, devemos, sim, solucionar nossos problemas internos, e jamais poderemos nos omitir nesse compromisso com a nossa própria história. Porém, num mundo em que as Nações Unidas foram incapazes de impedir que a deposição de um ditador e todas as metas colaterais se cumprissem à custa do assassinato de crianças inocentes, ninguém está moralmente habilitado a atirar a primeira pedra!

Ruy Altenfelder

é advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001/2002). É comendador da Afrobras (Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sóciocultural).

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