A parteira da história

De repente todo o desencanto do mundo parece ter desabado sobre a cabeça dos sofridos militantes do MST, esgotados por longa espera pelo cumprimento de leis que não apenas exigem respeito à propriedade alheia, mas também preconizam a prática de uma política realista de distribuição da terra para os que dela precisam.

Essa história é longa no Brasil e, em sua conformação atual vem dos anos 60, quando as primeiras ligas camponesas foram organizadas no Nordeste por Francisco Julião. Reforma agrária na lei ou na marra era, então, a palavra de ordem proclamada pelos sem-terra, que pressionavam o presidente João Goulart. Veio o ciclo militar e seu primeiro presidente, Castelo Branco, arrancou do Congresso o Estatuto da Terra, aprovado maciçamente com os votos da Arena, onde pontificava a fina flor do reacionarismo conservador da alta burguesia.

O Estatuto da Terra jamais foi cumprido porque ninguém moveu uma palha nesse sentido. Soube-se depois, que ele teria feito excelente papel caso tivesse sido concebido para resolver problemas agrários na Suécia, Luxemburgo ou Bélgica. O estupor durou alguns anos, até que um dos incompetentes treinados que serviam à tecnocracia oficial, no auge do desprezo ao ser humano, supôs que o melhor seria despachar aquela renca de famintos e desdentados para os confins da Amazônia e, conferir ao Brasil o título de executor da maior reforma agrária do planeta!

Em todo o decorrer dos anos 70, sem que nenhuma autoridade ligada ao sistema de planejamento percebesse, houve no Paraná um escancarado êxodo rural que tirou do campo mais de 1,5 milhão de pequenos agricultores num processo de migração interna jamais detectado, a não ser quando o IBGE tornou públicos os resultados do Censo Demográfico. Os planejadores da época, que pensavam um Estado com 10 milhões de habitantes e davam as primeiras tintas no discurso que antevia uma potência (um pais dentro de outro), embascaram-se com as revelações censitárias, de vez que ninguém conseguiu perceber o inchamento da Região Metropolitana de Curitiba, para onde veio a maioria dos agricultores expulsos do campo.

No começo dos anos 80 muito se discutiu essa questão de natureza econômica e social, mas sem o menor resultado prático por parte dos governos instituídos. Ao mesmo tempo, contudo, o germe do novo pensamento que derivava do aggiornamento estão proposto pelo Concílio Vaticano II, frutificava intensamente entre populações carentes nas cidades, mormente nas periferias, e também no campo, dando espaço às comunidades eclesiais de base, ao sindicalismo consciente no estilo lulista e ao movimento popular de luta pela terra. É nesse ambiente em que fervilhava o debate em busca de respeito, dignidade humana e garantia de direitos individuais de que brota a chamada Teologia da Libertação, talvez a principal colaboração de teólogos do Terceiro Mundo ao panorama histórico da Igreja, em todos os tempos.

O MST, que tanto temor está causando à sociedade, em função de posturas mais agressivas no processo de reivindicar direitos, é um dos melhores exemplos de organização, resistência e fé nos ideais. Nenhum partido político, sequer, arranha a disposição de luta desses homens e mulheres, muitos deles ainda acampados à beira de rodovias desde os heróicos dias da Encruzilhada Natalino, o primeiro acampamento de sem-terra, no Rio Grande do Sul.

O problema é que não se pode esperar paciência e acato à lei de quem está com fome e tem pressa de chegar à sua parcela de terra para trabalhar. De preferência, como quer o MST, lá onde as famílias tiveram origem e ainda guardam vestígios de história. Mas, aí está o busílis da questão. As terras todas pertencem a poucos proprietários e, quando invadidas tornam-se indisponíveis para desapropriação, sendo esses um dos mais ladinos casuísmos concebidos para proteger a propriedade.

Ocorre que os militantes, em desespero, invadem hoje também a terra considerada produtiva e, assim, agridem a legislação. Os proprietários entram na Justiça exigindo reintegração de posse que nenhum juiz nega. Recentemente o presidente do STF, ministro Maurício Correia, reiterou aos dirigentes do próprio MST que invasões em áreas produtivas ou não configuram ilícitos penais. Quem dá a ordem para a desocupação das áreas invadidas é o governador, que tem poder de polícia. E aí o circo pode incendiar. A parteira da história está só esperando o momento de entrar em cena.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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