13 anos do ECA

Aos 13 dias de julho de 2003, comemora-se treze anos da sanção do Estatuto da Criança do Adolescente, que entrou em vigor em 12 de outubro de 1990. Tal diploma legal, formulado com o objetivo de intervir positivamente na tragédia de exclusão experimentada pela nossa infância e juventude, apresenta duas propostas fundamentais:

a) garantir que as crianças e adolescentes brasileiros, até então reconhecidos como meros objetos de intervenção da família e do Estado, passem a ser tratados como sujeitos de direitos;

b) o desenvolvimento de uma nova política de atendimento à infância e juventude, informada pelos princípios da descentralização político-administrativa (com a conseqüente municipalização das ações) e da participação da sociedade civil.

Embora a maioria de nossas crianças e adolescentes ainda se encontre afastada da possibilidade do exercício dos direitos mais elementares de cidadania (compondo assim o contingente dos milhões de sem teto, sem terra, sem alimentação, sem saúde, sem educação, sem cultura, sem lazer, enfim, dos sem-oportunidade-de-vida-digna), não há dúvida de que, após treze anos da sua sanção, a lei já está interferindo de forma positiva nessa amarga realidade. Seja na esfera administrativa, com atuação cada vez mais ativa e competente dos Conselhos Tutelares e do Ministério Público (este último pela via dos inquéritos civis e termos de ajustamento), seja quando da intervenção da Justiça da Infância e da Juventude (aqui, principalmente, na apreciação das ações civis públicas para proteção dos interesses individuais, coletivos ou difusos relacionados a crianças e adolescentes, também, na maioria dos casos, propostas pelo Ministério Público), as previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente começam a deixar de ser singelas declarações retóricas para se constituírem em instrumentos de materialização das promessas de cidadania contidas no ordenamento jurídico.

De outro lado, no processo de instalação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, em especial os de âmbito municipal, desencadeou-se a maior mobilização social – jamais vista no País – a favor das crianças e adolescentes. Assim é que, em todas as localidades, realizam-se investigações destinadas a diagnosticar a efetiva situação da infância e da juventude para, em seguida, restar traçada adequada política de atendimento às necessidades detectadas, além da efetivação do controle das ações governamentais em todos os níveis. Por tudo isso, sem esquecer da ameaça concreta decorrente da hipocrisia neoliberal agora travestida de globalização da economia (tendente a transferir os foros das decisões políticas, sociais e econômicas dos espaços da soberania nacional para os escritórios acarpetados das empresas multinacionais ou transacionais, com previsíveis prejuízos às questões sociais – afinal, não é pela “natureza das coisas” que o governo brasileiro se vangloria do pagamento da dívida externa e não se envergonha com a sua crescente dívida social), é possível imaginar projeção no sentido da ampliação do exercício dos direitos contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, concretizando-se cada vez mais o comando legal pertinente à proteção integral da população infanto-juvenil, com correlatos deveres por parte da família, da sociedade e, principalmente, do Estado.

Dos temas emergenciais pertinentes às crianças e adolescentes (e, quase sempre, reflexos da situação familiar determinada pela inexistência de política de pleno emprego, salário justo ou, ao menos, de programas de renda mínima), destaque-se a necessidade da efetiva implementação dos projetos governamentais destinados ao auxilio a famílias carentes (conforme previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente), já que, na maioria absoluta das vezes, a promoção social de uma criança ou adolescente implicará resgatar para a cidadania também os seus familiares.

Atendidas as condições materiais indispensáveis à subsistência, o caminho seguinte a ser trilhado se traduz no encaminhamento de todas as crianças e adolescente para o sistema educacional, pois, como sempre se diz – e isto exsurge indisputável em relação aos nossos filhos – lugar de criança é na escola. Dentre os direitos fundamentais consagrados à infância e juventude, sem dúvida avulta em significado o pertinente à educação, observado também que o sistema educacional se constitui -juntamente com a família- em extraordinária agência de socialização do ser humano (isso sem contar com a possibilidade de importante interferência, enquanto aparelho ideológico do Estado, na formação do pensamento acerca da sociedade em que se vive e do papel que cada um pode nela desempenhar).

A educação, devidamente entendida como direito de todos e dever do Estado, destina-se, conforme prevê a regra constitucional, ao pleno desenvolvimento da pessoa, sua qualificação para o trabalho e, principalmente, ao preparo para o exercício da cidadania (art. 205, da CF). O direito de acesso, permanência e sucesso no sistema educacional comparece como antídoto à marginalização social que encaminha crianças e adolescentes à mendicância, ao trabalho precoce, à prostituição e à delinqüência. Não é por acaso que, na verificação dos adolescentes sujeitos às medidas sócio-educativas (especialmente as privativas de liberdade), alcança-se índices elevadíssimos no referente ao afastamento (muitas vezes por exclusão imposta indevidamente pela própria escola) do direito à educação.

A luta por novos e melhores dias para a infância e juventude brasileiras só pode estar embandeirada – e ter como ponto de partida – a efetivação do direito à educação. Por isso, o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao mesmo tempo em que arrola os seus princípios informadores (art. 53) e as formas de sua materialização (art. 54, incluindo o dever do Estado de assegurar “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria” e “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio”), assevera que “o acesso ao ensino obrigatório gratuito é direito público subjetivo”, e que “o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, assim como a sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente” (art. 54, §§ 1.º e 2.º).

Então, na perspectiva da formação de verdadeiros cidadãos, o processo educativo deve atender a propósitos de valorização do ser humano, de seu enriquecimento na campo das relações interpessoais, de respeito ao semelhante e, igualmente, de desenvolvimento do senso crítico, da responsabilidade social, do sentimento participativo, da expressão franca e livre do pensamento, enfim, constituindo-se a escola em espaço democrático propício ao desenvolvimento harmônico do educando. Ainda em tal aspecto, convém anotar a importância de restar concretizado, para todas as crianças de 0 a 6 anos, o direito a creche e pré-escola, capaz de atendê-los quanto à saúde e alimentação (eliminando-se, principalmente, os riscos das lesões cerebrais irreversíveis decorrentes da subnutrição), bem como a oportuna introjeção de valores ético-sociais, além do preparo para o ingresso no ensino fundamental, caminho para uma cidadania que se quer ver atingindo por todas as nossas crianças e adolescentes.

Nessa altura da reflexão – acerca das previsões do ordenamento jurídico e da realidade concreta – vale a convocação das forças progressistas da sociedade no sentido do empenho pela materialização do comandos legais, porquanto, como se sabe, a lei por si só não tem o condão de modificar a realidade social, mas sim o cumprimento das sua regras pelos governantes e o exercício dos direitos nela consagrados pela sociedade civil. Daí, tratando-se da concretude dos direitos, comparece o raciocínio de que – além da escola, da família e de outros espaços adequados para o seu desenvolvimento – lugar de criança é nos orçamentos públicos, cumprindo-se com o princípio constitucional da prioridade absoluta em prol da infância e juventude (que significa, segundo o ECA, preferência na formulação e execução das políticas públicas, assim como destinação privilegiada de recursos) e propiciando a consecução da política traçada pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (além de impedir transforme-se a lei em letra morta, tratada como simples exortação moral, mero conselho ou aviso para os administradores e, por isso mesmo, postergada na sua efetivação ou relegada ao abandono).

O acompanhamento da elaboração e execução das leis orçamentárias (começando pelos planos plurianuais, passando pela lei de diretrizes orçamentárias, até o orçamento propriamente dito) surge assim indispensável para a melhoria – sob todos os aspectos – das condições de vida das nossas crianças e adolescentes, relembrando-se, no referente à educação, a previsão constitucional no sentido de que “a União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante dos impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino” (art. 212, da CF) e do Estatuto da Criança e do Adolescente de que “é dever do Estado assegurar à criança e adolescente atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde” (art. 54, inc. VII).

A verdadeira comemoração do dia da criança se fará então quando as promessas de cidadania contidas no ordenamento jurídico comparecerem realidade nas suas vidas cotidianas, universalizando-se os direitos que parte da população infanto-juvenil já exercita. A certeza é de que, com a ação articulada dos seguimentos organizados da sociedade de civil e, quando necessário, via cumprimento de dever funcional por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, estaremos todos colaborando decisivamente para que a Nação brasileira venha a alcançar um dos seus objetivos fundamentais: o de instalar – digo eu, a partir das crianças e adolescentes – uma sociedade livre, justa e solidária.

Olympio de Sá Sotto Maior Neto

é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná

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