Bento Munhoz da Rocha Netto

O Ahu de Baixo era um ponto de encontro de italianos e poloneses, de nascimento ou de tradição, e que tinham visto o dirigível alemão que cruzara o Oceano Atlântico para fazer a propaganda nazista. Eram os anos trinta e eles viviam, apesar da distância, a ameaça de uma nova guerra mundial e os efeitos da tragédia que poderiam chegar até aqui. As casas eram de madeira, as ruas de barro, havia flores nos caminhos, a ternura da minha mãe, a bicicleta de meu pai e a minha irmã, bem criança, tomava banho numa bacia menor que a minha. Foi nesse tempo e neste lugar que nasci, há duzentos metros do altar, feito em 1980, para o papa rezar a missa. Aqui mesmo, onde agora está o Palácio do Governo, eu acompanhei, no início dos anos cinqüenta e no encantamento de minha juventude, o grande processo de migração de trabalhadores de várias regiões do Brasil para a construção desse magnífico complexo arquitetônico, extremamente arrojado para o seu tempo.

Deve-se ao sensível e combativo deputado Erondi Silvério a iniciativa do projeto que iria se converter na Lei n.º 06, de 1973, denominando esse grande e generoso espaço, formado pela sede dos três poderes e demais edifícios públicos que nele se englobem ou se avizinhem, de Centro Cívico Governador Bento Munhoz da Rocha netto.

É importante que as novas gerações tomem conhecimento, ainda que sumário, dessa figura notável de ser humano, de intelectual e de estadista e que deixou um relevante inventário de obras e de atitudes como professor, político, administrador e cidadão.

O inesquecível homem público nasceu em Paranaguá (1905) e faleceu em Curitiba (1973). Elegeu-se, em 1945, deputado à Assembléia Nacional Constituinte. Empossado em fevereiro de 1946, apresentou a emenda que suprimiu o território do Iguaçu. Aquela malsinada experiência divisionista fora agasalhada pelo Estado Novo, nos anos de 1943 a 1946, mas repelida pelos constituintes federais. Munhoz da Rocha foi um dos signatários da moção repudiando o Estado Novo (1937-1945). Outra iniciativa meritória foi a restauração da Universidade Federal do Paraná, que fora desmembrada em 1915, propondo que nela se integrassem as diversas faculdades existentes no Estado. O imortal paranaense exerceu o cargo de ministro da Agricultura, por nomeação do presidente João Café Filho (1899-1970). No pleito de outubro de 1958, elegeu-se novamente deputado federal. Ele foi também um dos responsáveis pelo apoio à integração racial de estrangeiros e paranaenses e das correntes migratórias internas de nosso País que possibilitariam o carinhoso epíteto Paraná, terra de todas as gentes.

Como governador, o professor Bento realizou fecunda administração. Construiu centenas de grupos escolares e postos de puericultura; criou a Fundação de Assistência ao Trabalhador Rural e a Secretaria do Trabalho e Assistência Social; iniciou a edificação da usina Termelétrica de Figueira e o asfaltamento de grandes rodovias, como os trechos Londrina-Apucarana e parte da Rodovia do Café (Ponta-Grossa-Paranavaí); fundou a Copel e as casas rurais e concluiu o Porto de Paranaguá. Nesse conjunto de obras de impacto social, político e cultural se destacam a Biblioteca Pública, o Teatro Guaíra (com a inauguração do pequeno auditório) e o Centro Cívico, compreendendo as casas dos três poderes e o edifício do Tribunal do Júri.

Munhoz da Rocha deixou muitos livros, destacando-se Uma interpretação das Américas (1948); Radiografia de novembro (1956); Itinerário (1958) e Presença do Brasil (1960). Uma valiosa reunião de escritos sobre o Paraná, os destinos do Brasil, bem como as esperanças e ceticismo de Bento Munhoz da Rocha Netto, foi editada pela Coleção Farol do Saber, em 1995, com magnífico texto de introdução de Luís Roberto Soares. Trata-se de mais um endereço para leitura das gerações do presente e do futuro e, em especial, para os historiadores comprometidos com a identidade cultural de nosso grande Estado e os valores que irradia para o País e para o mundo.

“Um homem do Paraná e das Américas”, como foi dito por Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, ao saudá-lo pelo ingresso na Academia Paranaense de Letras (1967).

O ex-deputado Norton Macedo, em texto lúcido e sensível disse, há quase vinte anos, palavras da maior atualidade e que devem ser reproduzidas: “Talvez nunca a Nação houvesse requerido tantas e tão decisivas definições econômicas, sociais e políticas. O País ganhou densidade, personalidade, importância internacional. Fazem falta a presença de Bento e a de homens como ele”. (Perfis Parlamentares, introdução.)

No discurso de posse na Academia Paranaense de Letras (1967), Bento Munhoz da Rocha Netto, após afirmar que “o nosso pioneirismo é uma glória nacional”, concluiu que “pela importância crescente do Estado, estamos vencendo nossa clássica e amarga tendência ao isolacionismo. Já começamos a julgar que os outros não são necessariamente melhores”.

Nada melhor que a sua memória de bom cidadão para estimular o sentimento paranista que, superando a fase e as supostas razões de um frustrado movimento divisionista, surge, na perspectiva do século XXI, como um importante projeto de aglutinação de esforços dos paranaenses.

O chamado sentimento paranista é uma conjugação de duas importantes virtudes: a afeição pela nossa gente, nossa história e nossas coisas e o civismo que deve pulsar no coração de todos os cidadãos de boa vontade que habitam a nossa terra.

Entre as diversas fontes, a respeito de sua generosa biografia, podem ser indicadas: a) Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, ed. Fundação Getúlio Vargas, 2001, vol. V, p. 5093, texto de Sílvia Pantoja; b) Perfis Parlamentares (32), ed. da Câmara dos Deputados, 1987; c) História do Paraná, ed. Grafipar, 1969, vol. 3.º, p. 310 e s., texto de Ruy Christovam Wachowicz; d) Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná, ed. Livraria do Chaim e Banestado, 1991, p. 300 e s.; e) O Paraná ensaios, ed. Coleção Farol do Saber, 1995; f) Relíquia de uma polêmica entre amigos, de Temístocles Linhares, ed. José Olympio, 1989 e os livros de memória da inseparável e afetuosa esposa, Flora Camargo Munhoz da Rocha: Bento Munhoz da Rocha e a imagem que ficou, ed. da família, 1985 e Entre sem bater, ed. Secretaria da Cultura do Paraná, 1998.

Encerro esta saudação à memória do imortal homem público com as carinhosas palavras da grande dama paranaense Flora Camargo Munhoz da Rocha em seu livro de lembranças:

“A cada dia, a cada instante, o riso, a simpatia, a personalidade forte de Bento estão presentes na lembrança dos amigos que o glorificam e que o engrandecem. Isso me enternece demais. Com empenho eu cultivo as amizades que eram dele. Com empenho eu os detenho para que se demorem falando nele, contando dele. Faço perguntas, indagações minuciosas, forçando uma emoção atrás da outra. Interessada em instantes ocasionais, me valho de pretextos: “Não vá ainda. Espere um pouco. Já vem aí um cafezinho”. Querendo ouvir de novo, quase suplico: “Conte mais. E aquela vez, como foi, até”? É a ansiedade de uma saudade reprimida que preciso dividir com aqueles que também o admiraram, o respeitaram, o amaram e o dignificaram com entusiasmo acalorado, anulando no momento o desalento da ausência”.

* Discurso em homenagem ao Governador Bento Munhoz da Rocha Netto, como parte das comemorações do Sesquicentenário de Emancipação Política do Paraná, em nome da Academia Paranaense de Letras por designação de seu Presidente, Doutor túlio Vargas. (Curitiba, Centro Cívico, 11.11.2003).

René Ariel Dotti é advogado, professor universitário e ex-secretário da Cultura do Paraná.

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