Averbação no registro civil de pessoas naturais do reconhecimento da paternidade: manifestação de vontade da mãe

1. Introdução

A questão que se coloca para estudo é a da necessidade (ou não) da intervenção da mãe para o ato de averbação da paternidade decorrente de reconhecimento posterior ao registro do nascimento de filho incapaz. Isto porque, não raro, se tem constatado no foro a exigência de que o pai apresente declaração de anuência da mãe com o ato, quando não acontece o comparecimento pessoal dela para esta finalidade.

As considerações que seguem não tem pretensão de esgotar o tema ou de fazer juízo de cognição exaustiva, ou, ainda, de oferecer solução definitiva. Visam, apenas, reflexionar sobre o tema e apresentar uma proposta de enfrentamento da questão, que se reputa mais adequada à natureza do ato, atentando, sempre, para o princípio do melhor interesse da criança.

2. O Direito

Incursionando pelo direito que rege a matéria, não se encontra a exigência (ao menos expressa) da presença da mãe para o ato de averbação da paternidade declarada, quando o reconhecimento se faz por qualquer das formas previstas na Lei nº 8.560/92. Com efeito, referida lei regula apenas o procedimento de averiguação oficiosa e estabelece as formas pelas quais se pode proceder o reconhecimento. Contudo, não vai além do ato de reconhecimento.

Nada se encontra no CC vigente (CC1916), nem no novo CC (Lei n.º 10.402/02), que incorporou ao texto do artigo 1609 a legislação em vigor, nada mais acrescentando.

A Lei dos Registros Públicos (Lei n.º 6.015/73), por sua vez, quando trata da lavratura do assento de nascimento, dispõe, no artigo 59, que não será declarado o nome do pai sem que este expressamente autorize ou compareça, não fazendo qualquer menção à autorização ou anuência da mãe.(1)

Enfim, o Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça também nada contém a respeito. Apenas disciplina as formalidades para o registro de nascimento do filho havido fora do casamento, no item 15.2.9, mas cuja normativa não se estende e nem se aplica à posterior averbação. Veja-se que a citada norma, nos seus incisos I e II, exige a manifestação de vontade dos dois pais para o ato do registro, e quando se pretende a inclusão do nome dos dois já no próprio termo. Justifica-se, então, a exigência do inciso I (comparecimento dos dois, pessoalmente ou por procurador), uma vez que não se poderá fazer constar o nome de um ou de outro sem sua manifestação expressa. Por sua vez, a regra do inciso II (comparecimento de um com declaração de reconhecimento ou anuência do outro) tem o mesmo sentido, apenas que dispensa a presença de um dos pais, desde que o outro leve até o oficial o reconhecimento ou anuência. Anuência esta que, a toda evidência, não é com a declaração de paternidade ou maternidade do outro, senão que anuência com que se coloque o seu nome como pai (ou mãe) do registrando.

3. O ato de reconhecimento da paternidade

De outro modo, o reconhecimento da paternidade de filho incapaz é ato jurídico que se reveste de características bastante específicas, quais sejam: é constitutivo de estado, personalíssimo, unilateral, puro e simples, não receptício, independente da vontade de terceiro ou do filho incapaz e, ainda, irrevogável, salvo vício de vontade.

É constitutivo de estado porque é dele que decorre a paternidade, ou seja, é através dele que o homem investe-se juridicamente da condição de pai,(2) inserindo também no estado do filho os seus parentes (avós, tios, etc.). É personalíssimo porque somente o pai tem legitimidade para praticá-lo, não se admitindo que ninguém o faça por ele. É ato unilateral, porque se perfaz com uma só declaração de vontade,(3) reputando-se perfeito e acabado tão somente pela atuação do pai, na forma da lei. A propósito, está no ECA, artigo 26, no CC1916, artigo 355, e no CC2002, artigo 1607, que os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, ou seja, é prerrogativa que a lei comete a cada genitor, individualmente.

É ato puro e simples, quer dizer, não se admite condição ou termo, que existentes, a lei reputa ineficazes (CC1916, artigo 361; CC2002, artigo 1613), de modo a prevalecer o reconhecimento sic et simpliciter. Formalismo algum é exigido pela lei, condicionamento algum é admissível ao ato.(4) Ainda, é ato não receptício, quer dizer, não depende da aceitação de quem quer que seja, entra no mundo jurídico independentemente de ter sido comunicado a alguém,(5) tão somente pela manifestação de vontade do pai na forma da lei, embora pendente da respectiva averbação para alcançar eficácia.(6)

Enfim, o reconhecimento da paternidade é irrevogável, por expressa disposição legal (Lei nº 8.560/92, artigo 1.o, caput; CC2002, artigo 1610), ou seja, uma vez praticado, não pode ser desfeito ad nutum, unicamente pela vontade de quem o praticou.

Disso se conclui, então, que basta o pai praticar o ato, observada qualquer das formas estabelecidas em lei, para que se crie no mundo jurídico o estado legal de filiação, sem que o filho ou qualquer outra pessoa possa ou deva intervir. O filho, aqui, é receptor passivo e, em princípio, não pode recusar-se ao reconhecimento, salvo quando atingir a maioridade, na forma do artigo 362, do CC1916, ou, logo, do artigo 1614, do CC2002.(7)

A mãe, por sua vez, é figura absolutamente alheia a tal relação, não lhe reconhecendo a lei qualquer participação no ato, nem por si, nem representando o filho. Não lhe cabe aceitar, não lhe cabe impugnar, não lhe cabe discutir. Somente lhe cabe resignar-se à vontade do homem, agora pai de seu filho. Esta é a disciplina legal.

É poder potestativo mesmo o que a lei confere ao homem, que se justifica no interesse maior do Estado de que todo filho tenha um pai, tanto que a própria lei facilita amplamente o reconhecimento, permitindo que se faça de formas mais simples e independentemente de maiores formalidades, dispensando assim a aceitação do incapaz ou do representante legal.

Independentemente do registro, então, a lei atribui àquele que reconheceu a paternidade a condição de pai, com todos os deveres e prerrogativas à ela inerentes, e das quais não pode mais se furtar, posto que além de irrevogável, é hábil, também, a produzir todos os seus efeitos legais.

4. O ato de averbação do reconhecimento

A conseqüente averbação da paternidade no registro civil das pessoas naturais, por sua vez, assume caráter nitidamente secundário, complementar ao ato principal que é o reconhecimento. Mesmo porque, sabido é que o registro civil de pessoas naturais não é ato constitutivo de direito, senão que apenas é ato comprobatório e publicitário de uma situação jurídica que já foi reconhecida e já está consolidada pela lei, que no caso é o estado de pai, mas com efeito de impor a terceiros interessados este estado de filiação.(8)

E é exatamente por isso, então, que é possível concluir que aquele que reconheceu a paternidade, agora pai, não somente pode, como também tem a obrigação de requerer a averbação do ato no registro civil, independentemente de qualquer manifestação de vontade do filho ou da mãe, nos mesmos termos do ato de reconhecimento, agindo, inclusive, no melhor interesse do filho.

Veja-se que se a lei permite que o pai possa praticar sozinho o ato mais importante, que é o reconhecimento, porque não permitiria que praticasse o ato menos importante, que é a simples averbação no registro? Com efeito, quem pode o mais, pode o menos. Se pode o pai reconhecer a paternidade, validamente, em ato unilateral, porque não poderia promover a conseqüente averbação, também em ato unilateral?

Ademais, indaga-se, porque haveria de se exigir a presença da mãe no ato registário, se ela sequer poderia se opor ao ato, nem por si, nem representando o filho?

Não poderia insurgir-se em nome próprio porque é figura alheia à relação jurídica que se estabeleceu com o reconhecimento, não lhe reconhecendo o direito legitimidade ou interesse algum para intervir neste ato em particular.

Também em nome do filho incapaz nada poderia fazer, uma vez que, como dito, o ato de reconhecimento é unilateral, não receptício, e independe da vontade do filho.

Este, também, o posicionamento do Procurador de Justiça José Luis Mônaco da Silva, que afirma que “não há razão de o reconhecimento condicionar-se à anuência da mãe do reconhecido”.(9)

5. Conclusão

Concluindo, então, a questão proposta, tenho que não se vislumbram fundamentos jurídicos consistentes que sustentem a exigência de intervenção da mãe no ato de averbação do reconhecimento da paternidade posteriormente à lavratura do assento, quando requerido pelo próprio pai. Tanto pela natureza do ato de reconhecimento da paternidade, tanto porque não se vê legitimidade da mãe ou do filho para opor-se a ele, como, também, porque tal poderia vir em prejuízo do menor, cujo interesse e necessidade a sobrelevar, por óbvio, são os de ter um pai.

Por mais que pareça um excesso de poder concedido ao pai, uma potestividade amparada pela lei, esta se afigura ser a solução que melhor ampara o incapaz e que melhor atende aos interesses do Estado, que tem mesmo na família a base da sociedade (CF, artigo 226).

Dessa forma, põe-se a salvo o reconhecimento da paternidade de discussões extremamente delicadas, intermináveis e até vexatórias, passando a residir o conflito em detrimento do filho, tanto no aspecto psicológico, quanto material, sem se falar no do social (embora em segredo de justiça a querela).

Vale observar, enfim, que não é comum ou ordinário que se reconheça a paternidade por mero diletantismo ou má-fé, tal que essa excepcionalidade, além do mais, não pode abalar ou comprometer a eficácia, a utilidade, o caráter e a moral do impulso volitivo de admissão da paternidade.

NOTAS

(1) Embora tal artigo se refira ao filho ilegítimo, interpretou-se a norma como relativa ao filho havido fora do casamento, à luz das disposições constitucionais vigentes, como, de resto, também o fez Walter Ceneviva, em Lei dos registros públicos comentada. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 141.

(2) A propósito, vide OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. A nova lei de investigação de paternidade. 2.ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2994. p. 90.

(3) PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. v. 1. p. 338.

(4) Conforme Washington de Barros Monteiro. Apud CURY, Munir e Outros. Estatuto da criança e do adolescente comentado. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 104.

(5) MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. Campinas: Bookseller, 2000. t. 2. p. 512.

(6) Exceção, apenas, a se faz ao reconhecimento do filho maior, exigindo-se o seu consentimento, nos termos da Lei n.º 8.560/92, artigo 4.o e do CC1916, artigo 362, que se reproduz no CC2002, artigo 1614. Mas, de qualquer forma, a hipótese aqui se restringe ao reconhecimento do incapaz.

(7) Vale observar, neste passo, que a regra do artigo 362, do CC1916, que se repete no artigo 1614, do CC2002, e que estabelece que o menor pode impugnar o reconhecimento nos 4 (quatro) anos que se seguirem a maioridade, ou à emancipação, não leva à conclusão de que deve haver o consentimento do filho menor com o reconhecimento. Ao contrário, ao facultar ao filho a impugnação do ato, na maioridade, confirma a regra de que ele independe de seu consentimento.

(8) É a lição de CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 5/6. Inclusive, a questão vem expressamente disciplinada no novo Código Civil, cujo artigo 1603 dispõe: “A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil”.

(9) Reconhecimento da paternidade. São Paulo: Universitária de Direito, 2001. p. 35.

Denise Damo Comel é professora assistente da Universidade Estadual de Ponta Grossa, professora da Escola da Magistratura do Paraná – núcleo de Cascavel e magistrada.

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