Aspectos inovadores da Propriedade no Novo Código Civil (V-V)

Dentro do capítulo da aquisição da propriedade imóvel, também é preciso destacar o artigo 1.245 do NCC, que na esteira do artigo 531 do CC-16, afirma que a propriedade imobiliária se transfere, entre vivos, mediante o registro do título translativo no registro de imóveis. Vale dizer, a propriedade (direito real) não se transfere mediante o mero negócio jurídico (direito pessoal). Este sistema visa privilegiar a segurança no tráfego jurídico, prestigiando várias conseqüências dos direitos das coisas, tais como a eficácia erga omnes, o direito de seqüela, o direito de preferência e a preservação do princípio dos numerus clausus dos direitos reais. A transferência da propriedade móvel, pelo artigo 1.267/NCC (tal como o artigo 620/CC-16), não se transfere com o mero negócio jurídico, sendo necessária a tradição, ainda que seja pelo constituto possessório (tradição ficta) ou por outra modalidade simbólica (como ocorre, por exemplo, na entrega das chaves de veículo). Entretanto, Códigos Civis recentes, como o Código Civil do Quebec, de 1995, adotam a concepção jurídica da transferência dos direitos reais solo consensu, como se percebe da leitura do seu artigo 1.708, ao dispor que “a compra e venda é o contrato pelo qual uma pessoa, o vendedor, transfere a propriedade de um bem a outra pessoa, o comprador, mediante o pagamento de um preço em dinheiro que esta última se obriga a pagar”. Sérgio José Porto, então, questiona se o sistema adotado pelo NCC foi o melhor ou não(40).

Em relação à aquisição da propriedade imóvel, na parte relativa às construções e às plantações, aconteceram importantes inovações.

Primeira, regulamenta-se o problema de quem constrói e planta em terreno alheio, estabelecendo o parágrafo único do artigo 1.255 que “se a construção ou plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”. Pelo CC-16, aquele que semeasse, plantasse ou edificasse em terreno alheio, mesmo estando de boa-fé, sempre perderia as sementes, plantas e construções, tendo somente direito à indenização, não adquirindo jamais o direito de propriedade (art. 547/CC-16). Houve, portanto, a revogação de importante regra pela qual o solo é a coisa principal em relação a tudo aquilo que nele se assenta. Todavia, para a caracterização de modo de aquisição da propriedade, é indispensável que o plantador ou construtor estejam de boa-fé e que o valor da plantação ou da construção exceda, consideravelmente, o valor do terreno. Se estiver de má-fé, além de não restar caracterizado o modo de aquisição da propriedade, o plantador ou o construtor não terá direito à indenização, além de poder ser constrangido a repor as coisas no estado anterior e a pagar os prejuízos causados ao proprietário do terreno, conforme determinava o artigo 547 do CC-16, em razão do princípio da reparação integral dos danos. Ademais, caberá ao juiz, mediante à analise das circunstâncias do caso concreto, definir o que é excesso “considerável”, porque não basta, por exemplo, que o montante da construção seja superior ao do terreno, o valor daquela deverá exceder “consideravelmente” o desta. Durante a realização da construção, o proprietário pode ajuizar ação de nunciação de obra nova (arts. 934-940/CPC). Porém, se terminada a construção, deve imperar o bom senso e o princípio da razoabilidade, devendo o magistrado considerar a função social da propriedade (arts. 5.º, inc. XXIII, e 170, inc. III), ao invés de determinar a imediata demolição da obra. Assim, se no lugar, foi construída, por exemplo, uma creche, um posto de saúde ou um asilo a melhor solução, ainda que tenha havido má-fé, poderá ser a condenação em perdas e danos(41).

Segunda, tratando-se da construção feita parcialmente em solo próprio, com invasão de solo alheio, o artigo 1.258, e seu parágrafo único, e o artigo 1.259 do NCC trouxeram as seguintes regras: I) O construtor de boa-fé, se a invasão não for superior à vigésima parte do solo alheio, adquire a propriedade da parte invadida, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que re-presente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente; II) O construtor de má-fé, passando em décuplo as perdas e danos previstas na regra anterior, adquire a propriedade do solo invadido se em proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a parte invasora sem grave prejuízo para a construção; III) O construtor de boa-fé, se a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mas o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; IV) O construtor de má-fé, se a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, é obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro. Tais inovações são importantes, na medida em que o legislador passou a regulamentar importante problema que tem surgido, principalmente nas cidades médias e grandes, especialmente quando os marcos divisórios não são claros. Caberá ao magistrado, com auxílio do perito, verificar a parcela do imóvel invadido e o valor da construção para, aliado à presunção de boa-fé (ou prova da má-fé), decidir a questão.

As duas modificações revelam a preocupação do legislador com o valor social das edificações, evitando a sua demolição; destarte, procura tutelar aquele que constrói no imóvel, dando-lhe uma função social, ainda que isto ocorra com a perda ou a parcial invasão do terreno alheio, por não ter o proprietário exercido a necessária vigilância e tido a atenção devida para com bem tão relevante (Exposição de Motivos do Projeto de Código Civil).

Entretanto, Jackson Rocha Guimarães critica estas regras, por considerá-las muito complexas, sugerindo a sua modificação, para que se adote uma regra que seja similar ao artigo 938 do CC italiano, que é mais simples, por contemplar apenas o possuidor de boa-fé, da seguinte maneira: “Se, na construção de um edifício, for ocupada, de boa-fé, uma porção do imóvel contíguo, e o proprietário desta não fizer oposição dentro de 3 (três) meses a contar do dia em que teve início a construção, poderá a autoridade judicial, tendo em conta as circunstâncias, atribuir ao construtor a propriedade do edifício do solo ocupado. O construtor é obrigado a pagar ao proprietário do solo o dobro do valor da superfície ocupada, além da indenização dos danos”(42).

Já, na subseção relativa às construções e plantações (arts. 1.253 até 1.259 do NCC) não se fez menção ao direito de retenção de benfeitorias úteis e necessárias, devendo ser aplicado, por analogia, o artigo 1.219 do NCC (que trata do direito de retenção pelo valor das benfeitorias úteis e necessárias, em relação ao possuidor de boa-fé).

No Capítulo referente à perda da propriedade, importante inovação foi trazida no artigo 1.276 do NCC, ao disciplinar as hipóteses de abandono do imóvel urbano e rural. O NCC equiparou os prazos de ambos os imóveis, afirmando que, após a declaração do bem como vago, passados três anos (e não mais dez anos, como se referia o CC-16, no art. 589, par. 2.º, aos imóveis urbanos), o proprietário perde o bem. É imprescindível, contudo, para a caracterização do abandono, que a ausência seja prolongada e que as circunstâncias demonstrem a intenção do possuidor de não mais conservar o bem em seu patrimônio. Vale dizer, a ausência temporária, por exemplo, de quem não utiliza regularmente um imóvel de veraneio ou de uma chácara, não implica o seu abandono. Perdido o imóvel urbano a propriedade é passada ao Município ou ao Distrito Federal, caso se encontre nas respectivas circunscrições. Por outro lado, perdido o imóvel rural, ele é transferido à União. Tal distinção se justifica em razão do ente público competente para a arrecadação dos tributos: os Municípios e o DF, o IPTU; a União, o Imposto Territorial Rural, além destes imóveis poderem ser destinados aos programas de Reforma Agrária.

Outra inovação, em relação ao abandono do imóvel (urbano ou rural), foi a presunção absoluta de que, cessados os atos de posse, a intenção do proprietário era abandonar o imóvel, se ele deixar de satisfazer os ônus fiscais (art. 1.276, par. 2.o, NCC). No entanto, a presunção absoluta, por não admitir a prova em contrário, é bastante severa, já que a inadimplência pode ter como causa motivos de força maior ou, mesmo, a discussão administrativa e judicial dos valores lançados. É, por isto, que no Projeto n. 6.960/2002, do Deputado Ricardo Fiuza de modificação do NCC, sugere-se a supressão do termo “absoluta”, o que transformaria a presunção juris et de jure (absoluta) em juris tantum (relativa), permitindo que o proprietário demonstre que o não pagamento do tributo não tenha a ver com o abandono da propriedade.

Por fim, tais aspectos inovadores começam a passar pelo crivo da doutrina e da jurisprudência, com vistas ao aprimoramento e melhor aplicação das regras referentes ao instituto da propriedade no Novo Código Civil. Afinal, toda nova lei precisa ser bem compreendida, para promover o desenvolvimento social.

NOTAS

(40) Cfr. Sérgio José Porto. O projeto de Código Civil e o Direito das Coisas. Cit. Pág. 45.

(41) Cfr. Sílvio de Salvo Venosa. Direito civil. Vol. V. Cit. Pág. 187.

(42) Cfr. O novo Código Civil e o Direito das Coisas. Cit. Pág. 58.

Eduardo Cambi

é mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Civil da PUC-PR e dos cursos de mestrado da Unespar e da Unisul. Assessor jurídico do TJ/PR.

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