As peripécias do repórter

Gilberto Grassi era chefe de reportagem e copidesque. Isto é, o repórter ia para a rua, fazia a entrevista, colhia os dados, anotava, se informava. De volta, redigia o material e entregava para o redator, que lia e a “penteava”, se fosse o caso. (As matérias tinham que ser entregues redigidas até às 18h para o fechamento do jornal.) Numa determinada tarde, o Gilberto (uma maravilha de pessoa) gritou: “O que é isso, Arnoldo: todo dia, diariamente”. Não disse nada, fiquei quieto (também não tinha o que dizer), mas comigo mesmo falei: “que merda, pensei tanto para usar a expressão mais bonita e saíram as duas”! O mesmo Gilberto chegou para mim um dia e pediu: “Vê se você consegue entrevistar esse cara que o Paulo (era o Paulo Pimentel, dono do jornal) está pedindo há dias e ele (o cara) se nega a receber a reportagem, não sei por quê! Peguei a história, o endereço e fui, acompanhado do fotógrafo, se não me engano o Portos ou o Socó. O cara que o Gilberto falava era o dono da indústria de cimento Itambé. Na época, havia um descontentamento meio geral no Paraná porque tinha sido aprovada a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu, sem a participação de indústrias paranaenses na obra, embora o Estado tivesse que ceder as suas melhores terras para a formação do lago. Mas surgiu a notícia de que a indústria de cimento iria fornecer o cimento para a construção da usina, logo em seguida foi admitida. O jornal queria saber se a indústria ia ou não fornecer cimento para a construção da usina. Chegamos no escritório do industrial, nos apresentamos e a secretária nos fez entrar de imediato. “Doutor, o senhor podia confirmar se a sua indústria vai ou não fornecer cimento para construção da Itaipu?”. A resposta – “Nós vamos fornecer não só cimento como também clínquer para a construção da usina”. Quando ele falou clínquer eu tremi. Nunca tinha ouvido falar essa palavra. Pelo sotaque, era inglês e eu não sei uma palavra bretã. “Dr., por favor, como se escreve clínquer”? O cidadão saltou da cadeira, quase gritando. “Por isso que eu não queria dar entrevista. Dia desse, um repórter esteve aqui e me criou um problema que até hoje não consegui resolver. Agora vem você, que não sabe escrever clínquer. O fotógrafo se encolheu num canto. Eu, naquela altura, com o atestado de burrice proclamado pelo cara, também berrei. “Doutor, não vejo nenhum demérito em confessar a ignorância. Não conheço a palavra, não sei o que significa, deve ser inglês e eu não sei inglês, mas quero fazer uma notícia correta. Se o senhor explicar fica melhor!”. O cara até se chocou com a minha reação, ou confissão, ou minha ignorância ou minha humildade. “A palavra não é inglesa e se escreve como se pronuncia”, respondeu raivoso. A entrevista passou a se desenvolver num clima pesado e eu continuava sem saber o significado da palavra. Quando estava levantando para ir embora, ele chamou um técnico e disse: “Explique para o moço o que é clínquer”. Pausadamente, o técnico falou: “Clínquer é a primeira fase do cimento. É a pedra moída. É o cimento em grosso, antes de ser moído, que numa segunda etapa passa a ser o cimento, esse que você conhece”. E aproveitou para informar que a Itambé seria beneficiada duplamente, porque forneceria cimento e também clínquer para a construção da maior usina hidrelétrica do mundo. Tudo certo. Saímos numa boa e a notícia saiu certinha no dia seguinte.

Quem me assustou mesmo na redação foi o Mussa.O estimado Mussa José Assis, diretor de redação. Concentrado, redigindo uma matéria, chegou ele ao meu lado e perguntou. “O que você armou lá na Base Aérea, que está em pé de guerra por causa da tua entrevista!” “Mussa, não fiz nada. Foi você que me pediu para ir correndo ao Bacacheri entrevistar o presidente do Superior Tribunal Militar, que estava lá almoçando com os oficiais da Aeronáutica. Quem me acompanhou até o salão onde estavam os militares foi o tenente Átila, relações públicas.” “Mas eles não gostaram das perguntas e estão vindo aqui para ver como você redigiu matéria”, me advertiu o Mussa. Fiquei calado, não entendi bem a coisa. Encerrei a pauta e fui embora, meio com medo. Vivíamos sob o regime militar. No dia seguinte, o Mussa contou que realmente esteve lá o assessor de imprensa do presidente, um jornalista de gabarito, respeitado. Disse ao Mussa que o mal-estar foi criado pela presença do repórter, não convidado, e pelo assunto abordado (quem lembra daquele decreto que levava os estudantes ao Tribunal Militar para serem julgados quando de suas manifestações) e ainda porque o presidente do STM não era da mesma Arma. A comitiva teria sido traída pela Base Aérea ao informar o jornal da presença do presidente. O jornalista até elogiou a matéria.

O Luciano era de Fortaleza. Disse que chegou em Curitiba puxando uma cadelinha, para significar que veio sem nada. Jornalista com algumas experiência por lá, foi contratado por O Estado e logo em seguida galgado a chefe de reportagem. Acho que todos gostavam do Luciano. O repórter sai mais cedo da redação. O chefe de reportagem, mais tarde, conseqüentemente. Num final de tarde, quase noite, eu estava no Alto da Rua 15, tomando uma caipirinha, quando o Luciano chegou meio esbaforido; “Não há de ver que o Mussa me tirou da chefia de reportagem e me mandou embora do jornal, Arnoldo. Logo agora que minha mulher e meus filhos estão gostando de Curitiba. O pior é que com isso eu perco também a assessoria de imprensa do secretário da Saúde, Arnaldo Busato e fico desempregado. O que vou fazer? Vou ter que voltar para o Ceará”. “Mas o que você andou aprontando, Luciano?” Contou uma história. “Então tome uma comigo e amanhã eu falo com o Mussa.” Falei. Não sei o que, mas falei. Só lembro da minha última frase. “Mussa, tem mais Deus para dar que o diabo para tirar.” “Será?”, respondeu-me, olhando firme na minha cara. O Luciano ficou na chefia de reportagem até quando quis.

Antes de ir para O Estado era repórter do então Diário do Paraná. Um dia me encontrei com o Ventelino, fotógrafo do O Estado, nos fundões de Rio Branco do Sul. Um morro havia deslizado e soterrado casas e ranchos. Treze pessoas morreram. Eu, pelo Diário, estava acompanhado do fotógrafo Ayrton Sampaio. O Ventelino, sozinho, sem repórter. Terminada a reportagem, ele me perguntou se não podia dar para ele alguns dados que eu havia levantado para alguém redigir na redação de O Estado. “Passe às 15h na redação do Diário, que te dou uma cópia do que eu redigir.” Passou. Levou e a cobertura de O Estado do Paraná sobre a tragédia saiu completa. E completas têm sido todas as 15.437 edições deste jornal que está comemorando 51 de fundação, mais de meio século de circulação.

Arnoldo Anater

é jornalista e advogado.

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